DUELO E A ÉTICA DO MAL
De acordo com a sabedoria ancestral zimbabueana «a raiva de um falo em alta não destrói o sexo oposto». Este falo cuja luta e função são políticas de subjugação, pelos vistos, não só não esmaga a ‘vítima’, de igual modo o subordinado contra o qual se pretende mostrar poder – o marido − também não evapora. O facto é que ambos, a violentada e o castrado simbolicamente, carregam as feridas na alma. O que na linguagem clínica são os traumas. Assim começa a revelação dos limites, da nudez e fragilidade do poder falocrático. Ao reafirmar a sua virilidade opressora «o potentado proclama paradoxalmente a sua vulnerabilidade no próprio acto através do qual pretende manifestar a sua omnipotência», afirma Tansi. Não poucas vezes o tirano encontra no uso do seu falo a doença e a morte.
Para o caso angolano, o paciente cujo diagnóstico está feito, começou uma batalha campal para exigir satisfação por meio do duelo. Basicamente, o duelo é o combate entre duas pessoas por questão de honra; situação de conflito ou concorrência entre duas pessoas ou dois grupos; luta entre dois corpos de exército ou entre dois grupos. Do hemisfério sul ao norte, o duelo vem sendo praticado. Em muitas sociedades europeias, esta prática estava presente até no princípio do século XX. O poeta afro-russo, Alexandre Puchkine morreu num duelo cujo oponente foi o barão francês Dantès. No romance, O Vermelho e o Negro (1830), o personagem central, Julien Sorel, envolve-se num duelo. Narrativa que confirma esta prática naquela época (Stendhal). Inúmeras civilizações e culturas africanas praticavam o duelo (sobretudo, em sociedades guerreiras). Nos tempos modernos, ele foi incorporado por grupos paralelos ao Estado ou que capturaram o Estado. O processo que leva a desposar uma mulher, pode encontrar no duelo uma via para que tal pretensão se concretize. Os parentes da pretendida podem exigir o confronto entre dois rapazes para que o vencedor possa ter a desejada como esposa. Há casos em que o duelo consiste numa caçada com vista a obter um animal feroz contra o qual os pretendentes travam uma batalha mortal. Terá a mulher como esposa, aquele que matar a fera e apresentar à comunidade. O cinema asiático (China, Índia, Afeganistão, Bangladesh e Japão) é particularmente rico na interpretação do duelo e da ética do mal. É frequente assistirmos a filmes que narram desavenças cujo desfecho passa por uma luta mortal com vista a restaurar a honra.
Na obra, O Código De Honra: Como Ocorrem As Revoluções Morais, o filósofo ganês, Kwame Appiah, analisa o percurso do duelo e da honra ao longo da história, em várias culturas e povos, e como esta prática moldou a ética em diferentes sociedades.
Para o caso angolano, uma questão se impõe: Quê tipo de ética? Estamos a falar de uma ética do mal. Um código moral que rege a comunidade de assassinos, gangs, lumpenradicais, mafias, traficantes, fora ou dentro de um aparelho de Estado. Parece paradoxal aos olhos de um individuo cuja vida é guiada por padrões éticos socialmente aceites, pensar ou aceitar que estes grupos também têm um código moral. Têm e o praticam. Por isso, quando nos referimos sobre a honra no caso vertente, ‘não se trata de uma honra de pessoas honradas’no sentido ordinário. Trata-se de um duelo que visa reerguer um homem dentro de um universo obscuro.
Em A Luta pelo Poder e a Evolução do Habitus nos Séculos XIX e XX, o sociólogo alemão, Norbert Elias, permite-nos compreender o papel e as implicações do duelo na relação de poder entre os membros do establishment e a ralé.
O duelo é um demarcador de classe. É uma prova de pertencimento à elite e que se é digno de ser parte dela. Ou seja, só os cidadãos que detêm posições de influência e poder, podem envolver-se num duelo. Esta prática tem lugar quando um membro do grupo vê-se confrontado na sua honra. Neste sentido, o duelo visa exigir satisfação ao oponente e recuperar o capital simbólico perdido. Ao travar esta batalha pela honra, o duelista vencedor reforça o seu status diante do grupo.
Sendo certo, que a sociedade de duelistas é uma Ordem que opera imune às leis estabelecidas pelo Estado, logo, é um grupo que nega, destrói o monopólio da violência e de aplicação da lei que numa sociedade moderna, cabe ao Estado. Ao quebrar este monopólio da força e de aplicação do corpus legis, estabelecem um governo paralelo que opera fora ou dentro do Estado capturado pela gang.
Dito isto, os duelistas arbitram os seus conflitos com base no seu código de honra. Um dos elementos fundamentais do código de honra é: nenhum membro do grupo pode permitir que o outro seja responsabilizado ou sofra. Transpondo isso, para os factos concretos, isso, explica a simulação de julgamentos e ordens de soltura sem fundamento legal. É o código do grupo que está a funcionar, uma vez que o promotor do duelo está satisfeito com o grau de disciplina imposta e a victória alcançada na luta pela honra. O insultado sente que o seu poder de exigir satisfação funciona, por isso, pode dosear conforme os seus interesses, uma vez que pontifica a gestão da ordem extra-estatal, mesmo que sob a capa de intra-estatal. É chocante e assustador como a ética do mal, impregnada no interior do código de honra, se manifesta: «é impressionante ver como o código social das classes altas activou usualmente a solidariedade de seus membros em face do poder do Estado, mesmo quando tinham se enfrentado antes como inimigos mortais. O código de honra da elite tem prioridade sobre as leis do Estado. Até o [chefe supremo] tem que submeter-se-lhe. Mesmo os guardiães das leis do Estado tentam automaticamente proteger os criminosos de elevada estirpe da punição pelos tribunais, o que imediatamente aconteceria se ele pertencesse a uma classe inferior. A unanimidade com que, neste caso, todos os membros cerram fileiras —, [...] a fim de evitar o envolvimento dos tribunais do Estado e das leis — [...] expressa uma convicção [...] quetem efeitos particularmente duradouros no subsequente desenvolvimento da [nossa sociedade] e é perceptível até aos dias actuais». (N. Elias).
Na sequência das decisões de João Lourenço, que afectaram os tentáculos económicos dos filhos do seu antecessor, Tchizé dos Santos reagiu: «sejam que lutas forem, são lutas dos mais velhos que vêm, algumas delas, do tempo da mata, outras vêm do tempo da fundação do MPLA, outras vêm do tempo do partido único, outras vêm do tempo pré-constituição da República. Nós não vamos lutar em nome de ninguém. [...] Minha juventude, meus irmãos, não vamos abraçar essa guerra, essa guerra não é nossa, é deles [...] Vamos dar as mãos, vamos ser angolanos, deixem os mais velhos lutarem sozinhos». No presente juízo, está subsumido uma tentativa de convencimento dos cidadãos para que não tomassem partido ao lado de Lourenço. Esta afirmação é vaga, mas levou-nos a colocar a seguinte questão: será que entre as causas do duelo, a Tchizé queria referir-se também a intromissão hipotética do seu pai na intimidade do actual presidente?