GENOCÍDIO INSTITUCIONAL DO MPLA
Perante a blindagem que ainda hoje o regime faz ao que se passou, situação que impede a consulta de documentos e que atemoriza muitos dos intervenientes cujo testemunho é imprescindível para um conhecimento que chegue ainda mais perto da verdade, a história do massacre vai continuar com muitos capítulos especulativos mas, igualmente, como instrumento na mão do poder. Na versão oficial, através de uma declaração do Bureau Político do MPLA, divulgada a 12 de Julho de 1977, o 27 de Maio foi uma “tentativa de golpe de Estado” por parte de “fraccionistas” do movimento, cujos principais “cérebros” foram Nito Alves e José Van-dunem, versão que seria alterada mais tarde para “acontecimentos do 27 de Maio”.
Nito Alves e José Van-dúnem tinham sido formalmente acusados de fraccionismo em Outubro de 1976. Os visados propuseram a criação de uma comissão de inquérito, que foi liderada por José Eduardo dos Santos, para averiguar se havia ou não fraccionismo no seio do partido. As conclusões nunca chegaram a ser divulgadas publicamente mas, segundo alguns sobreviventes, revelariam que não existia fraccionismo no seio do MPLA.
Tal como hoje os jovens activistas não lideram nenhuma tentativa de golpe de Estado. Eduardo dos Santos sabia disso, mas é- lhe conveniente não saber. João Lourenço sabe disso, mas é- lhe conveniente não saber.
Consta que o próprio José Eduardo dos Santos, tal como o então primeiro- ministro, Lopo do Nascimento, seriam alvos a abater pela cúpula do MPLA. A Eduardo dos Santos terá valido a intervenção do comissário provincial do Lubango, Belarmino Van-dúnem.
Os apoiantes de Nito Alves consideravam que o golpe já estava a ser feito por uma ala maoísta do partido, liderada pelo secretário administrativo do movimento, Lúcio Lara, que terá instrumentalizado os principais centros de decisão do partido e os média, em especial ( como continua a acontecer) o Jornal de Angola, pelo que consideraram que a manifestação convocada por Nito Alves foi “um contra- golpe”. Em relação ao número de mortos, os números vaiam segundo as fontes. Terão sido mais de 15 mil e menos de 100 mil. É claro que, como continua a ser prática, nessa altura os ditos fraccionistas sofreram horrores terríveis, desde prisões arbitrárias, a tortura, condenações sem julgamento ou execuções sumárias. João Lourenço sabe que isto é verdade, tal como sabe que o responsável foi Agostinho Neto. O apontado líder do alegado golpe de Estado terá sido fuzilado, mas o seu corpo nunca foi encontrado, tal como o dos seus mais directos apoiantes como José Van- Dúnem e Sita Valles, que foi dirigente da UEC, ligada ao Partido Comunista Português, do qual se desvinculou mais tarde, e foi expulsa do MPLA.
Em Abril de 1992, o governo do MPLA reconheceu que foram “julgados, condenados e executados” os principais “mentores e autores da intentona fraccionista”, que classificou como “uma acção militar de grande envergadura” que tinha por objectivo “a tomada do poder pela força e a destituição do presidente Agostinho Neto”. Moralmente, pelo menos, o principal responsável foi Agostinho Neto que, assessorado por alguns dos mais radicais membros do MPLA, não se preocupou em apurar a verdade, dispensou os tribunais, admitiu que fizessem justiça por suas próprias mãos.
Relatos dispersos dizem que o Presidente Agostinho Neto foi, antes de tudo, chefe duma facção e não o árbitro, o unificador, estando completamente dominado pela arrogância, inflexibilidade e cegueira. Certo é, contudo, que Angola perdeu muitos dos seus melhores quadros: combatentes experimentados em mil batalhas, mulheres combativas, jovens militantes, intelectuais e estudantes universitários. Dessa forma o MPLA decapitou os que sonhavam com um futuro melhor, mais igualitário e mais fraterno para os angolanos. Para todos os angolanos.
O livro da jornalista britânica Lara Pawson (“Em Nome do Povo – O massacre que Angola silenciou”) sobre este assunto, “levanta mais perguntas do que respostas” sobre as verdadeiras intenções, envolvidos e número de mortos. O livro, que demorou sete anos a escrever, representa uma investigação de sete anos da antiga correspondente da BBC em Angola (1998-2000), demora que a autora atribuiu à própria “lentidão” e à incerteza criada pelos testemunhos que recolheu entre Londres, Lisboa e Luanda. “Todas as pessoas com quem eu falava pareciam ter visões muito facciosas e eu achava difícil confiar em alguém. Esse é um dos interesses do livro, porque levanta a questão do rigor da informação sobre Angola e qual é a informação em que podemos confiar”, explica Lara Pawson.
O 27 de Maio de 1977 é descrito como uma tentativa de golpe de Estado por “fraccionistas” do próprio MPLA, então já no poder do país recém- independente, contra o Presidente Agostinho Neto e o “bureau político” do partido.
Segundo vários relatos, milhares terão morrido na reacção das FAPLA, nomeadamente os dirigentes Nito Alves, então ministro da Administração Interna, e José Van- Dúnem, mas foi difícil para Lara Pawson alcançar uma “versão definitiva” sobre os interesses e objectivos daquele movimento, que alegou tratar- se de um ` contragolpe`.
“Uma das discussões foi saber se foi manifestação ou golpe de Estado e o que aprendi após falar com angolanos, em particular o povo, é que muito deles acreditavam estar a participar numa manifestação pacífica. Mas, por outro lado, o facto de a 9 ª Brigada se ter envolvido, de a rádio ter sido ocupada durante várias horas por homens com armas e as prisões invadidas parece difícil negar que não houve tentativa de golpe”, salienta a autora.
Outra questão controversa que tentou esclarecer foi o número de mortos resultantes da resposta do regime, e que variam, segundo as versões, entre 20 mil a 30 mil mortos, número dado à autora pelo irmão de José Van- Dúnem, João, a 100 mil mortos reivindicados pela Fundação 27 de Maio.
“O mais próximo que consegui de uma versão oficial foi de Fernando Costa Andrade, antigo director do Jornal de Angola. Ele disse que o ministro de Defesa da altura tinha estimado pelo menos 2.000 mortos. Se um ministro diz isto, é porque no mínimo foram 2.000 mortos, mas podem ter sido mais”, referiu Lara Pawson. O envolvimento de Moscovo, a existência de fracturas entre os próprios fraccionistas são outras questões que continuam em aberto, bem como o papel de José Eduardo dos Santos, que sucedeu a Agostinho Neto no poder.
A “complexidade e contradições” que rodeiam o assunto contribuíram para a “obsessão” de Lara Pawson em querer escrever este livro num tom romanceado, mas descobriu que o assunto continua a ser um “tabu” e que muitos dos envolvidos têm medo de falar, pelo que a identidade teve de ser preservada no livro.
O próprio receio do MPLA em “abrir a ferida” abriu espaço para que Nito Alves seja actualmente idolatrado por jovens angolanos opositores ao regime, disse a jornalista britânica, concluindo: “Esconder a verdade está a criar cada vez mais o peso do próprio mito”.