OS PORTUGUESES QUEREM O BEM DE ANGOLA?
Mais de 715 mil ficheiros ajudam a reconstituir a forma como Isabel dos Santos fez fortuna ao longo das últimas décadas, criando um império que se espalhou por diversas jurisdições envoltas em secretismo. É o novo projeto de investigação do ICIJ, Consórci
Os comentadores e atores políticos portugueses repetem- se em sentenças moralistas sobre como os políticos angolanos deviam atuar. Fizeram isso no tempo da presidência de José Eduardo dos Santos e fazem- no agora no tempo de João Lourenço.
A propósito da investigação angolana a Isabel dos Santos, ouvi ontem a antiga diplomata Ana Gomes dizer que as denúncias que ela protagoniza sobre o tema têm como objetivo primordial “o bem do povo angolano”.
Ouça a opinião de Pedro Tadeu Essa frase implica uma visão paternalista sobre Angola pois admite que os angolanos não sabem conquistar o seu próprio bem sozinhos e, por isso, precisam de ajuda do lado português.
O que eu pergunto é isto: os portugueses podem dar lições a Angola?
Tenho muita dificuldade em dar lições de moral a quem, através do meu país, sofreu 400 anos de colonização violenta.
Tenho muita dificuldade em dar lições de moral a um povo que o meu país transformou no maior produtor de escravos de toda a história da África ocidental.
Acho que antes de, paternalmente, andarmos todos agora a felicitar o funcionamento do Estado de Direito em Angola, deveríamos lembrar- nos de como escrevemos e abusámos de leis injustas, quando estivemos a mandar nas colónias até há 45 anos, dedicados à tarefa de explorar a população negra de forma inaceitável, mesmo para os padrões da época. Acho que antes de andarmos a bradar que a corrupção em Angola é uma vergonha, deveríamos analisar a consciência portuguesa pela manutenção de uma guerra colonial sangrenta, em Angola e noutras colónias.
Quantas pessoas em Portugal ainda guardam fotografias de palhotas queimadas e cabeças de “turras” ( como então se dizia) espetadas num pau? Quem é que deixou Angola num estado de guerra civil que acabaria por durar 27 anos?
Não foi Portugal?
E quantos portugueses aproveitaram a guerra civil para tráficos inconfessáveis? Não foi Portugal que falhou, por razões certamente compreensíveis, mas que não podem ser ignoradas, condições políticas para que os 300 mil portugueses que detinham os meios de fazer fortuna em Angola tivessem de fugir, sem nada, para Portugal?
E quando esses meios de fazer fortuna foram abandonados quem é que ficou com eles? Quando se pergunta pela origem das fortunas angolanas esquece- se, convenientemente, que a sua formação inicial surge da saída portuguesa do país e do resultado da guerra civil que os portugueses não conseguiram impedir: ou seja, as primeiras riquezas disponíveis em Angola foram para as mãos dos que se combatiam no país e, depois, para quem dirigiu e ganhou a guerra, como acontece na formação da esmagadora maioria dos países do mundo, incluindo o nosso.
Se, após o fim da guerra em 2002 ( há apenas 12 anos) houve, entretanto, abusos e casos de corrupção ao mais alto nível, é claro que os responsáveis devem ser levados à justiça, mas à justiça dos angolanos não à justiça dos portugueses, que tantas responsabilidades têm nesta matéria.
E a hipocrisia portuguesa com o bem- estar do povo angolano ainda piora nos anos recentes quando, no auge da crise em Portugal e quando o dinheiro do petróleo permitia a Angola ter uma enorme liquidez financeira, centenas de portugueses foram para lá tentar enriquecer ou auferir salários elevados à custa de um desenvolvimento económico que não beneficiou, na mesma proporção, a generalidade da população o que, com a memória colonial, certamente aumentou o ressentimento nas ruas de Luanda contra o “branco” que desembarca de Lisboa. E, por cá, quantos políticos, economistas, empresários, gestores, dirigentes de entidades reguladoras, banqueiros e jornalistas fecharam os olhos, foram cúmplices ou beneficiaram diretamente dos dinheiros supostamente corruptos de Angola? A justiça portuguesa já fez algo de relevante sobre isso?
Quem adorou que a Avenida da Liberdade fosse, em 2012, a rua com as lojas mais caras da Europa, prontas para servirem a febre consumista das novas fortunas angolanas?
E porque é que vejo tantos portugueses distintos, que se alimentaram desse dinheiro angolano, a estarem agora na primeira linha das críticas aos ricos angolanos?
Acho, também, que antes de nos preocuparmos com os angolanos que vivem em Angola, como a embaixadora Ana Gomes afirma que se preocupa, devíamos cuidar melhor dos angolanos ou descendentes de angolanos que não são milionários e que vivem em Portugal e não devíamos aceitar que eles sejam tratados como cidadãos de segunda, numa exclusão racista que torna inacessível o acesso dessas pessoas ao melhor da nossa educação, aos nossos melhores empregos. Em suma: os portugueses querem mesmo o bem do povo angolano? Duvido.
Quer este meu relambório dizer que estou contra a investigação a Isabel dos Santos? Não. Estou até muito a favor e aguardo para ver o resultado. Só não quero é fazer de hipócrita e esquecer as responsabilidades do meu país.
Intitulado Luanda Leaks, o mais recente projeto de investigação do ICIJ, consórcio internacional de jornalismo de investigação, em parceria com outros 36 meios de comunicação, incluindo o Expresso e a SIC, traz a público a história detalhada de como Isabel dos Santos se tornou a mulher mais rica de África, com base numa fuga de informação assente em mais de 715 mil ficheiros. Ao longo de vários meses, mais de 120 jornalistas de 20 países analisaram 356 gigabytes de dados relativos aos negócios de Isabel dos Santos entre 1980 e 2018, informação que permitiu identificar mais de 400 empresas ( e respetivas subsidiárias) a que Isabel dos Santos esteve ligada nas últimas três décadas.
Se Isabel dos Santos vem enfatizando que a sua fortuna resultou do seu rasgo como empreendedora e da sua capacidade de investir em negócios bem sucedidos, os registos a que o ICIJ teve acesso contam uma história diferente de como a filha do ex- Presidente José Eduardo dos Santos construiu a sua fortuna, revelando como Isabel dos Santos e o seu marido, Sindika Dokolo, exploraram vazios legais ou zonas cinzentas da legislação para ampliar a sua fortuna e proteger os seus ativos das autoridades fiscais e de outras entidades.
A investigação levada a cabo pelo ICIJ e seus parceiros ( em que se incluem, além do Expresso, o “Le Monde”, “The New York Times”, “The Guardian”, “Süddeutsche Zeitung”, BBC, entre outros) revela como Isabel dos Santos canalizou centenas de milhões de dólares de dinheiro estatal para um labirinto de empresas, muitas delas em jurisdições envoltas em secretismo ( sejam elas tratadas como paraísos fiscais ou não), com a ajuda de uma rede de entidades financeiras, advogados, contabilistas e governantes, de Lisboa a Londres, de Valeta ao Dubai. A informação obtida pelo ICIJ foi facultada pela PPLAAF, plataforma de proteção de denunciantes em África, uma entidade que tem a sua sede em Paris e que não pagou pela informação quaisquer verbas aos whistleblowers, cujo objetivo foi ajudar a expor práticas criminais. Globalmente, entre 1992 e 2019, Isabel dos Santos e Sindika Dokolo tiveram participações num total de 423 empresas ( e respetivas subsidiárias). Desse total, 155 são sociedades portuguesas e 99 são angolanas. Excluindo as subsidiárias ( incluindo as dos bancos de que é acionista, da Galp, da Efacec e da NOS), é possível contabilizar 192 empresas, espalhadas por 25 países, de que Isabel dos Santos e Sindika Dokolo são ou foram acionistas.
A rede empresarial estendeu- se da Holanda às Ilhas Maurícias, passando por Malta, Dubai, Ilhas Virgens Britânicas, Suíça, Luxemburgo, Hong Kong, Chipre, Gibraltar, Tailândia, entre outras jurisdições.