O JUIZ E A CERCA SANITÁRIA: NOTAS SOBRE A HERMENÊUTICA E A LEGÍSTICA DO CASO (I)
I. A DISCUSSÃO Desde que começou a discussão sobre o caso do Juiz, autuado em violação da cerca sanitária tentando sair da província de Luanda, que opõe a Magistratura Judicial e a Polícia Nacional ( PN) quanto a interpretação e aplicação do direito, apenas me limitei a reconhecer o mérito da decisão da PN.
Não tomei parte directa da discussão sobre o mérito da solução normativa do caso. Mas pude perceber que duas correntes passaram a dominar as discussões.
Uma corrente, que nega a aplicação directa da Constituição da República ( CRA) ao caso, e em consequência inviabiliza a utilidade do Estatuto dos Magistrados Judiciais, alegando que a livre circulação dos juízes não pode ser invocada contra o Decreto Presidencial n. º 120/ 20 que regula o estado de emergência ( EE). Chamaria, por razões de exposição, escola CONSTITUCIONALISTA. Entre os defensores mais destacados desta escola está o constitucionalista António Paulo, com os seus brilhantes textos publicados no Jornal de Angola. Outra corrente, a que chamaria escola JUDICIARISTA, convoca a aplicação do Estatuto dos Magistrados Judiciais ( EMJ) ao caso alegando que a livre circulação decorre de um direito claramente reconhecido aos magistrados judiciais como livre trânsito, assim sendo este direito cabe no conjunto de direitos e imunidades previstos no art. º 58. º , n. º 5 da CRA. Esta corrente é sintomática na apologia dos juizes que tomam parte da discussão pública do assunto. O que justifica a denominação da escola.
É de reconhecer que, pela elevação técnica e coerência no discurso, a argumentação feita por cada uma dessas correntes é por si mesma um monumento a boa discussão académica do Direito que recomenda grandes reflexões aos legisladores interessados na harmonização da justiça das regras do EE. Não é demais reconhecer que é uma das mais respeitáveis discussões travadas sobre o Direito em Angola porque opõe a postura de duas corporações públicas ( PN e Judicatura) afins a aplicação do Direito.
Não tomo partido de qualquer das correntes e nem imputo falta de razão para qualquer delas. Cada uma delas seguindo a construção do raciocínio vertido justifica a sua própria verdade diante do caso. Mas é- me inevitável avaliar o mérito das opiniões em contradição e trazer para cada uma delas o reforço de que necessitam para cristalizarem as verdades que defendem.
Desde logo, é evidente que ambas as correntes avizinham- se no facto de reconhecerem a competência regulatória do caso pela CRA. A primeira faz um reconhecimento implícito, porque limita- se a afastar a má interpretação feita ao art. º 58. º n º 5 da CRA, com argumento de que a livre circulação não pode ser entendida como um direito reconhecível aos juizes durante a vigência do EE, e a segunda, um reconhecimento explícito, porque impõem a relação de subsidiaridade entre o Estatuto dos Magistrados Judiciais e a CRA no que toca aos direitos e imunidades dos magistrados judiciais alegando que o direito a livre circulação está claramente alojado no diploma fundamental. Entretanto, as duas correntes não discutem a construção metodológica da ordem jurídica aplicável ao caso, não alargam a discussão dos conceitos operados aos marcos da Metodologia do Direito colocando a margem o princípio da especialidade ( Lex specialis derrogat lex generalis) aplicável no processo de interpretação sistemática do Direito, e em consequência não afirmam e nem confirmam a competência de regular o EE atribuída ao Decreto Presidencial n. º 120/ 20 ( DP), enquanto lei especial. O que justifica as seguintes notas:
II. O PROBLEMA METODOLÓGICO
Não é demais convocar a ideia de que o sistema romano- germânico a que a família dos direitos positivos de que Angola faz parte é tributário da escola positivista fundada por Hanz Herald Kelsen para quem, inspirado sobretudo pela escola filosófica da Jurisprudência dos Conceitos ( PUCHTA), o Direito é um sistema sobreposto de normas em que uma suposta norma fundamental inspira o valor das restantes normas por derivação levando a que a norma mais directamente aplicável ao caso seja encadeada as outras numa perspectiva piramidal.
Ou seja, a ordem jurídica é uma pirâmide de normas em que cada norma encontra fundamento na outra. Essa escola metodológica que impera entre nós justifica a força hermenêutica do princípio da especialidade ( lex specialis derrogat lex generalis) no processo de interpretação das normas.
Assim, de acordo com este princípio, a aplicação de uma norma a um caso concreto deve seguir a regra de imediação, a regra da norma mais próxima ao caso. Esta norma entretanto, não pode ser entendida fora do contexto de outras normas, não exclui outras normas por todas conjuntamente interpretarem o espírito do sistema. Daí que o intérprete- aplicador do Direito ( juiz), diante de uma lacuna de leis, seja obrigado a criar a norma ad- hoc com recurso ao conjunto de todas as outras normas relaccionadas com a situação em falta que possa identificar no sistema ( art. º 10. º do Código Civil).
Perceber a construção piramidal da nossa ordem jurídica é fundamental para uma correcta legística e uma correcta hermenêutica aplicáveis a construção das leis a interpretação dos casos. Pois, estando enquadrada numa pirâmide, a norma aplicável será sempre aquela que no conjunto das normas está mais próxima ao caso e sendo aplicada ao caso não exclui necessariamente todas outras mantendo íntegra a pirâmide do sistema. Segundo conflitualistas como Baptista Machado, essa percepção piramidal dos sistemas jurídicos, conduz o processo de resolução dos conflitos de leis interessadas em regular os casos concretos.
Deste modo, não restam dúvidas de que para a regulação do EE a norma mais próxima ( no caso diploma legal) é o DP e neste é vasada toda competência legislativa através da CRA enquanto sua norma fundamental. Assim esclarece- se a pirâmide kelseniana do Direito Positivo.
III. O PROBLEMA HERME
NÊUTICO
A interpretação sistemática que consiste em relaccionar as normas interessadas ( ou seja, aplicáveis) no caso, ocorre através de uma cadeia lógica entre as normas. O principio da especialidade conduz esta cadeia de normas através da regra da subsidiaridade, esta regra de hermenêutica ajuda a encadear as normas com a coerência lógica necessária no processo de interpretação sistemática do Direito. Não há, por isso, qualquer interpretação sistemática que não seja sustentada pela regra da subsidiaridade.
Ora, a regra da subsidiaridade só pode ser percebida através das remissões que se apresentam como os seus elos na relação lógica entre as normas. Portanto, é mister assentar que sem remissões não há subsidiaridade entre as normas e sem esta relação de subsidiaridade não é possível fixar a interpretação sistemática de qualquer norma. Se, o Decreto Presidencial n. º 120/ 20 ( DP), encadeado aos restantes decretos presidenciais e a Lei n º 17/ 91 que regula o EE, é a lei com competência para regular o EE, a aplicação de todos outros diplomas legais ( CRA, EMJ, etc) interessados em regular o caso, só pode ocorrer se estabelecida a relacção de subsidiaridade entre as normas, logo todas as normas que não sejam chamadas pelo DP através de remissões são inaplicáveis ao EE. Ou seja, em homenagem ao principio da especialidade, o Decreto Presidencial n. º 120/ 20 impede a aplicação directa de quaisquer outras normas interessadas no caso, a menos que ela mesma ( DP) convoque essa aplicação através de normas remissivas.
Opropósito da polémica sobre a interpretação e aplicação da lei ( disposições da CRA) entre a Polícia Nacional ( PN) e o Conselho Superior da Magistratura Judicial ( doravante CSMJ), decorrente da ordem de retenção e retorno a procedência dada ao Dr. Januário Catengo em Benguela em plena vigência do Estado de Emergência, quando este tentava o regresso ao Namibe vindo de Luanda onde terá permanecido alguns dias por razões pessoais ( autorizadas).
Dos Factos e do Direito: Ora, no entender da PN, passo a citar, “a competência jurisdicional do Dr. Januário não foi colocada em causa. Pois, segundo a PN, ele é juiz da Comarca do Namibe e a sua jurisdição é específica ao Namibe. Não há nenhuma justificação para fazer o trajecto Luanda- Namibe visto que a imunidade não confere legitimidade para cometimento de crimes ou infracções e violação de normas.
Na opinião da PN, qualquer uma das secções da Constituição da República que dispõe sobre as imunidades não confere legitimidade ao seu titular para fazer o que bem entende. Estabelece apenas que este não pode ser detido ou preso em flagrante delito por crimes cuja pena seja inferior a dois anos ( prisão correccional) ou para aqueles crimes cuja pena é superior a dois anos”. O CSMJ esclarece, no entanto, que “o Magistrado Judicial Januário Linda Catengo, ao pretender deslocar- se à província do Namibe, nada mais fez senão cumprir cabalmente com as determinações da
Constituição da República, do Decreto Presidencial n. o 120/ 20, de 24 de Abril que prorroga o Estado de Emergência, assim como as Resoluções do Conselho Superior da Magistratura Judicial de 16 de Abril e 25 de Março de 2020.
O CSMJ sublinha que a Constituição da República é clara ao anunciar, através da alínea b) do n. o 5 do artigo 58. o que, em caso algum o Estado de Emergência pode afectar os direitos e imunidades dos membros dos órgãos de soberania.
O Decreto Presidencial n. o 120/ 20, de 24 de Abril que prorroga o Estado de Emergência autoriza a deslocação do Magistrado, considerando que à interdição de circulação exeptuam- se, nos termos do n. o 2 do artigo 5. o, alíneas b) prestação de serviços autorizados a funcionar; d) o exercício de actividade laboral para os cidadãos com vínculo laboral com instituições em funcionamento durante o período de vigência do Estado de Emergência” fim de citação.
Quem tem razão? Sentido e Alcance do Gozo de Imunidades Cingiremos a nossa breve e imparcial análise aos factos acima oferecidos subsumindo- os a lei e a doutrina. Comecemos por questionar o que são imunidades? De acordo com André Leite – imunidades são prerrogativas e direitos funcionalizados e nunca direitos subjectivos. Existem se e na medida em que se revelem essenciais para que, no caso, os juízes mantenham a independência, inamovibilidade e irresponsabilidade que os caracterizam. Nunca para benefício próprio, mas porque só assim existe um verdadeiro poder judicial livre de intromissões dos demais no quadro de um Estado de Direito. Com esta definição, entendemos que as imunidades só se aplicam enquanto o seu titular exerce as funções para as quais tais imunidades lhe foram atribuidas e não para tratar de assuntos pessoais. Está aqui fixado o sentido da atribuição de imunidades funcionais.
Agora, qual é o seu alcance? No seu pronunciamento, a PN afirma não ter posto em causa a competência jurisdicional do Dr. Januário, sustentando que a mesma circunscreve- se a Província do Namibe. Ora, o que é uma competência jurisdicional e qual é o seu alcance?
No respeitante às atribuições dos Juizes, a competência jurisdicional obedece a pelo menos 2 critérios: a) critério objectivo – competência em razão do valor da causa e da matéria e b) territorial - competência em função do domicílio das partes, bem como pela situação da coisa imóvel e do lugar dos actos ou factos ( sem desprimor a competência funcional). Lembro- me, enquanto Advogado, ter presenciado situações em que o Juiz interrompeu a sessão de julgamento convidando as partes para com ele deslocarem- se ao local da ocorrência dos factos. Portanto, compete também ao Juiz efectuar as diligências necessárias para o apuramento da verdade material in situ. Pode dar- se o caso de haver necessidade de levar este serviço além da sua área de jurisdição, concertando ou não com os seus pares. Será que ao sair da sua zona de jurisdição ele perde as imunidades? Não. Mas, atenção: só estará protegido por elas enquanto estiver no exercício das suas funções.
A meu ver, o que está aqui em causa não é tanto a questão de saber se o Meritíssimo goza ou não de imunidades em situação de Estado de Emergência, pois temos como certo que sim, mas nos termos acima referidos. Também estamos a par do que dispõe a nossa Constituição nos termos da alínea b) do n. o 5 do artigo 58. o relativamente as imunidades. O que está em causa é a questão de saber se nas circunstâncias em que foi interpelado, e, considerando as razões que motivaram a viagem, vale invocar as prerrogativas conferidas pela CRA para o exercício das suas funções como Juiz. Assim, a questão que aqui deixo para a nossa reflexão é a seguinte: será que ao deslocar- se a Luanda o Meritíssimo Juiz de Direito Dr. Januário Catengo encontrava- se no exercício das suas funções?
* Doutorando em Direito Internacional