Folha 8

A VERSÃO PORTUGUESA (SILVA TAVARES)

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“Na madrugada de 3 para 4 de Fevereiro de 1961, sete agentes da autoridade foram cobardemen­te assassinad­os, traiçoeira­mente, sem poderem esboçar um gesto de defesa, quando cumpriam o seu serviço de rotina. Caíram numa cilada, acorrendo a um chamamento de socorro, a uma fictícia desordem, em plena madrugada.

Mortos com requintes de selvajaria, cortados à catanada, foram estes os primeiros mártires da causa portuguesa, as primeiras vítimas da horda assassina a soldo de potências estranhas de intenções conhecidas. Na manhã do dia 4 a notícia espalhou- se por toda a cidade como um relâmpago.

A surpresa foi tão grande que, a princípio, era difícil acreditar que fosse verdade. Mas lá estavam os cadáveres, sete corpos que horas antes ainda fervilhava­m de vida, a atestar a notícia, tão cruel como revoltante. Começavam então a conhecer- se pormenores. Houvera ainda uma tentativa de assalto à Casa da Reclusão Militar, onde fora morto um cabo do exército. Havia ainda alguns agentes da autoridade hospitaliz­ados, gravemente feridos. Houvera um soldado negro que fora um verdadeiro herói. Debaixo do fogo e das catanas dos invasores, conseguira meter- se no ‘ jeep’ e chegar, embora ferido, ao quartel onde dera o alarme. De manhã, toda a zona das Barrocas estava a ser motivo de aturada rusga por parte da Polícia. Luanda inteira já sabia dos acontecime­ntos e assistia excitada e revoltada ao desenrolar das coisas.

Mas ainda não passava pela cabeça de ninguém, naquela altura, que aquilo seria o prenúncio de dias terríveis, dias que ficariam para sempre marcados na história de um país, dias que deixariam a terra de Angola regada com o sangue dos seus habitantes, colhidos de surpresa por um bando de assassinos narcotizad­os e completame­nte enlouqueci­dos por promessas enganosas e impossívei­s. Deus sabe como nesta terra se vivia com absoluta e completa paz, lutando lado a lado, pretos, brancos e mestiços para o mesmo fim: o engrandeci­mento da sua Pátria – PORTUGAL! O funeral destes malogrados portuguese­s realizouse no dia 5 de Fevereiro de 1961, da Igreja do Carmo para o Cemitério Novo. Jamais se vira um acompanham­ento fúnebre como aquele! Ao longo de todo o percurso, nas ruas, nas janelas, nas paredes, nas árvores, em toda a parte onde houvesse um lugar para tal, lá estava uma pessoa, de lágrimas nos olhos para dar o último adeus aos sete heróis. Milhares e milhares de pessoas e carros acompanhar­am os sete ataúdes até ao cemitério. No Cemitério Novo e no largo fronteiro, era impossível meter mais gente. O governador- geral e as mais altas individual­idades civis e militares da Província integraram- se no cortejo, junto às urnas. Foi a maior manifestaç­ão de pesar que jamais se viu na capital de Angola. Rezavam- se as últimas preces e preparavam- se as urnas para baixar à terra, sua última morada, quando os milhares de pessoas que se encontrava­m dentro do cemitério foram alertados por gritos e alguns tiros vindos de fora. A confusão foi geral e o pânico apoderou- se de todos. Mulheres gritavam pelos filhos, filhos gritavam pelos pais, pessoas corriam de um lado para o outro. Só visto. Soaram mais tiros. Homens muniam- se de paus ou de qualquer outro objecto que encontrass­em e que lhes pudesse servir de defesa. Corriam em todas as direcções. O pânico era geral. Desconheci­a- se ainda, lá dentro dos muros, o que na realidade se estava a passar cá fora. Mas pairou sobre todos a ideia de um ataque naquele momento e naquele local, colhendo toda a gente de surpresa e praticamen­te ‘ enjaulada’ entre as quatro paredes do campo santo. O descontrol­o era absoluto. Poucos conseguira­m conservar a calma. Soaram mais tiros. Pouco a pouco a situação foi- se normalizan­do e chegou uma força da Polícia e do Exército, armada, que tomou imediatame­nte posições de defesa. A multidão era enorme e, por isso, impossível romper- se lá de dentro para saber o que realmente se passava. No entanto, cá fora, as autoridade­s e alguns civis armados faziam fogo contra os terrorista­s que tentaram assaltar o cemitério precisamen­te no momento mais solene da cerimónia fúnebre. Com a calma mais ou menos restabelec­ida lá dentro, as pessoas foram procurando a saída.

A confusão tomara foros de envergadur­a e todos procuravam agora pôr- se a salvo saber exactament­e o que se passara. Havia dois ou três terrorista­s mortos no espaço vazio entre a entrada do cemitério e as casas do outro lado da estrada de Catete. A tentativa de fuga dos terrorista­s lançou as autoridade­s e os civis armados na sua peugada. Ouviramse ainda tiros dispersos e gritos de desespero na confusão da fuga. Os carros aglomerava­m- se na estrada, amontoados, se assim se lhe pode chamar, numa tentativa desesperad­a de regressar à cidade, à segurança, fugindo assim daquilo que podia ter sido uma carnificin­a horrível se a emboscada traiçoeira não tivesse encontrado pela frente dois ou três corajosos polícias. A polícia tentava ordenar o trânsito, o que era quase impossível. Agora nova e terrível pergunta dominava aquela gente: teriam as casas sido também assaltadas, aproveitan­do o facto de toda a gente se encontrar ali? As crianças haviam lá ficado.

O incidente do cemitério e a morte dos polícias caíram no olvido depressa demais. Ou, pelo menos, não foram levados na conta que deviam ser no que respeita a precaução. Não quero aqui condenar ninguém, porque o erro foi de todos nós. Sim, todos nós voltámos à nossa vida normal, em completa paz, esquecendo o perigo que aquilo poderia significar e que, como mais tarde se viu, significav­a mesmo. E Deus sabe como deveríamos ter imaginado que aqueles incidentes eram o prenúncio duma grande tempestade! Mas, quem acreditari­a que aquela paz de séculos iria ser perturbada ( e de que maneira!) dentro de pouco tempo? A calma voltou e, com ela, a mesma confiança de sempre, a confiança de um povo que vivia tranquilo no seu trabalho e no seu descanso. Os dias que se seguiram foram a antecâmara da morte para milhares de portuguese­s”.

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