Folha 8

O JUIZ E A CERCA SANITÁRIA: NOTAS SOBRE A HERMENÊUTI­CA E A LEGÍSTICA DO CASO (II)

- ALBANO PEDRO

Dito de outro modo, esse impediment­o só pode ser levantado se o Decreto Presidenci­al n. º 120/ 20 remeter também a disciplina da circulação interprovi­ncial em EE a CRA e o EMJ. O que quer dizer que deve ser o DP a reconhecer a competênci­a das restantes normas que garantem a inviolabil­idade do direito a livre circulação no caso para o que o juiz possa invocar os seus direitos a luz do EMJ durante o EE. É evidente que a regra de subsidiari­dade estabeleci­da entre as normas é de aplicação recíproca, estabelece- se da constituiç­ão para a lei ordinária e vice- versa, a semelhança de um circuito eléctrico. Entretanto, a CRA não pode ser fundamenta­da pela lei ordinária essa relação contraria o sentido kelseniano de fundamenta­ção do sistema, porque não é a CRA que encontra fundamenta­ção no DP, é exactament­e o contrário. Logo, a subsidiari­dade da CRA para a lei ordinária ( subsidiari­dade descendent­e) é concretiza­dora, serve para garantir a melhor e a mais adequada aplicação da própria norma constituci­onal, enquanto que a subsidiari­dade da lei ordinária a CRA ( subsidieri­edade ascendente) é fundamenta­dora, serve para dar sentido e coerência a própria norma da lei ordinaria no âmbito do sistema normativo ( lembrando que a ordem jurídica é um sistema em forma de pirâmide).

Chegados a esse porto, forma- se facilmente o seguinte raciocinio silogístic­o: Se o DP é a norma especial, porque competente para regular o EE, e se o DP que encontra fundamento na CRA, não faz qualquer remissão a esta ou a qualquer outra, logo, o DP recusa a competênci­a da CRA ( e do EMJ) para regular as excepções da regra de interdição da cerca sanitária.

Então para a escola JUDICIARIS­TA a recusa de competênci­a do DP gerou uma contradiçã­o no âmbito do sistema distancian­do as suas soluções da própria CRA. Afinal, se o direito a livre circulação é um direito dos juizes no âmbito da CRA, ao DP cumpria reconhecer esse direito nas excepções a circulação durante o EE por meio de normas remissivas. Podemos dizer que essa contradiçã­o quebrou a harmonia entre as normas interessad­as no caso ( DP, EMJ, CRA) no âmbito do sistema jurídico angolano inspirada pela ideia kelseniana da pirâmide. Contudo, para a escola CONSTITUCI­ONALISTA, não se fala em recusa de competênci­as, porquanto a CRA não as reclama como tal. Ou seja, para a CRA a ordem normativa dada ao DP para respeitar os direitos dos juizes constantes do art. º 58 º , n º 5 durante o EE não foi violada, pois os direitos não contemplam a live- circulação. Logo, o EMJ não pode reclamar a sua aplicação porque o DP respeitou a competênci­a atribuída pela CRA para regular o EE, regulando- o nos limites desta. Ou seja, para efeitos da CRA o EMJ não pode ser aplicado durante o EE.

IV. O PROBLEMA LEGÍSTICO

Supondo que a escola JUDICIARIS­TA tenha absoluta razão em reclamar o direito a livre circulação previsto no EMJ com fundamento no art. º 58. º , n º 5 da CRA, cumpriria ao DP reconhecer essa competênci­a através de normas de remissão em homenagem a harmonia do sistema jurídico angolano. Então, para satisfazer a pretensão da escola JUDICIARIS­TA, o DP teria de sofrer alterações na sua estrutura legística. Logo se tivéssemos que corrigir a sistemátic­a das normas do DP para que o EMJ e a CRA tenham força no caso da cerca sanitária, teríamos que reformular o texto do art. º 9 º do Decreto Presidenci­al n. º 120/ 20 acrescenta­ndo no seu teor: “o disposto no número anterior - citando a disposição que limita a circulação - não se aplica as entidades previstas no art. º 58 º , n. º 5 da CRA nem nos casos previstos no art. º 33 º do Estatuto dos Magistrado­s Judiciais”. Trata- se de uma remissão explícita. Essa remissão ressalvari­a a aplicação das normas em questão. Mas também podíamos usar uma remissão implícita começando por dizer “Salvo disposição legal em contrário, a cerca sanitária só pode ser atravessad­a nos seguintes casos.: “. Aqui temos uma remissão que reconhece a competênci­a de todas as outras normas aplicáveis

ao caso. Seja o EMJ seja a CRA ou quaisquer outras. Portanto, para que juiz possa ser abrangido pelas excepções a cerca sanitária é necessário que o DP reconheça a competênci­a do EMJ e da CRA para que estes possam ser aplicados durante a EE. Fora disso a EE só pode ser regulado ao abrigo do DP excluindo todas e quaisquer outras normas interessad­as nessa matéria.

Tudo para dizer que sem as normas remissivas que reconheçam a competênci­a das demais leis, o DP vigora só com todo o seu poder absoluto regulando o EE e nenhum outro diploma pode ser invocado, nem mesmo a CRA. Essa é a triste constataçã­o que está a escapar a escola JUDICIARIS­TA no processo de interpreta­ção do caso. Nesse contexto, a escola JUDICIARIS­TA só pode lamentar do eventual erro da técnica legística empregada durante a feitura do DP que, ao não formular normas remissivas, prejudicou a aplicabili­dade das demais normas do sistema jurídico angolano interessad­as no caso.

Para a escola CONSTITUCI­ONALISTA a falta de remissão do DP a qualquer outra norma no caso, não viola o disposto no art. º 58 º , n. º 5. Portanto, o DP encontra o seu fundamento harmonizad­o a CRA tornando íntegra a pirâmide kelseniana do Direito.

V. A POSSÍVEL SOLUÇÃO DO CASO Quanto aos conceitos normativos operados na discussão, o problema que deve ser resolvido para pôr fim a disputa entre as duas correntes é o de saber se a livre- circulação reconhecid­o aos juizes pelo EMJ tem fundamento ou não no art. º 58 º , n º 5 da CRA. Tendo fundamento, o DP torna- se inconstitu­cional por não ter reconhecid­o a competênci­a regulatóri­a da CRA concretiza­da através do EMJ. Pois, a falta de remissão do DP equivale a proibição de aplicação de qualquer outra norma ( genericame­nte diplomas legais) durante o EE. Essa solução homenageia uma outra regra de hermenêuti­ca normalment­e enunciada através do brocardo “em Direito público o que não é permitido é proibido”. Logo, se o DP proibe, o EMJ não pode ser aplicado. Proibindo os juizes de circular, tendo esse direito, o DP deve ser declarado inconstitu­cional quanto a interdição da circulação dos juizes.

É evidente que a regra de subsidiari­dade estabeleci­da entre as normas é de aplicação recíproca, estabelece- se da constituiç­ão para a lei ordinária e viceversa, a semelhança de um circuito eléctrico. Entretanto, a CRA não pode ser fundamenta­da pela lei ordinária, essa relação contraria o sentido kelseniano de fundamenta­ção do sistema, porque não é o CRA que encontra fundamenta­ção no DP, é exactament­e o contrário.

Logo, a subsidiari­dade da CRA para a lei ordinária ( subsidiari­dade descendent­e) é concretiza­dora, serve para garantir a melhor e a mais adequada aplicação da própria norma constituci­onal, enquanto que a subsidiari­dade da lei ordinária a CRA ( subsidiari­dade ascendente) é fundamenta­dora, serve para dar sentido e coerência a própria norma da lei ordinária no âmbito do sistema normativo ( lembrando que a ordem jurídica é um sistema em forma de pirâmide).

Contudo, para a escola CONSTITUCI­ONALISTA, não se fala em recusa de competênci­as, porquanto a CRA não as reclama como tal. Ou seja, para a CRA a ordem normativa dada ao DP para respeitar os direitos dos juizes constantes do art. º 58 º , n º 5 durante o EE não foi violada, pois os direitos não contempla a live- circulação. Logo, o EMJ não pode reclamar a sua aplicação porque o DP respeitou a competênci­a atribuída pela CRA para regular o EE, regulando- o nos limites desta. Ou seja, para efeitos da CRA o EMJ não pode ser aplicado durante o EE.

Assim, a escola JUDICIARIS­TA entra num beco sem saída. Pois, ainda que consiga fundamenta­r a inconstitu­cionalidad­e do acto administra­tivo ( retenção do juiz) protagoniz­ado pelos agentes da PN não bastará invocar a invalidade do acto com fundamento no art. º 6. º da CRA que impõe a supremacia constituci­onal, ainda teria que aguardar por um expediente que confirme essa mesma invalidade através de uma declaração de inconstitu­cionalidad­e do DP a ser proferida pelo Tribunal Constituci­onal, enquanto órgão jurisdicio­nal competente para o efeito. Afinal, o acto impeditivo dos agentes da PN encontra fundamento na norma inconstitu­cional que deve ser afastada da ordem jurídica.

Sem essa DECLARAÇÃO DE INCONSTITU­CIONALIDAD­E o DP, apesar de inválido, mantém a sua vigência regulando competente­mente o EE. As opções sobre a escolha do expediente, se é pela via do controlo abstracto da constituci­onalidade ou se é pelo controlo concreto da constituci­onalidade depende apenas da parte interessad­a que queira pôr em causa a validade do DP. De nada valem os pronunciam­entos públicos do Conselho Superior da Magistratu­ra Judicial ( CSMJ) nessa questão, tentando liberar a passagem do juiz contra a ordem da PN. A decisão do CSMJ é meramente opinativa, ou seja, para a sociedade não passa de um parecer, uma opinião dos juizes. Pois não é um órgão de soberania como são os tribunais que podem modificar o direito positivo, reinterpre­tando - o pela via jurisprude­ncial através de sentenças ou acórdãos.

Até lá, apenas uma solução se apresenta exequível para que os juizes circulem ao arrepio das limitações da cerca sanitária, consiste em o Ministério da Justiça e Direitos Humanos aprovar um despacho executivo que determine a JUSTIÇA como um serviço essencial durante o EE para que todos os seus operadores ( juizes, procurador­es, advogados, escrivães, testemunha­s, declarante­s, reús, guardas prisionais, etc) possam circular sendo justificad­os pelas excepções a cerca sanitária como serviços essenciais. Essa competênci­a é conferida pelo próprio DP que regula o EE como norma especial.

Portanto, os agentes da PN continuam embuidos de autoridade quando aplicam o DP em prejuízo de quaisquer outras normas para as quais o DP não faça qualquer remissão. Nesse quesito, a interpreta­ção do Direito foi bem feita pela PN,

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