O JUIZ E A CERCA SANITÁRIA: NOTAS SOBRE A HERMENÊUTICA E A LEGÍSTICA DO CASO (II)
Dito de outro modo, esse impedimento só pode ser levantado se o Decreto Presidencial n. º 120/ 20 remeter também a disciplina da circulação interprovincial em EE a CRA e o EMJ. O que quer dizer que deve ser o DP a reconhecer a competência das restantes normas que garantem a inviolabilidade do direito a livre circulação no caso para o que o juiz possa invocar os seus direitos a luz do EMJ durante o EE. É evidente que a regra de subsidiaridade estabelecida entre as normas é de aplicação recíproca, estabelece- se da constituição para a lei ordinária e vice- versa, a semelhança de um circuito eléctrico. Entretanto, a CRA não pode ser fundamentada pela lei ordinária essa relação contraria o sentido kelseniano de fundamentação do sistema, porque não é a CRA que encontra fundamentação no DP, é exactamente o contrário. Logo, a subsidiaridade da CRA para a lei ordinária ( subsidiaridade descendente) é concretizadora, serve para garantir a melhor e a mais adequada aplicação da própria norma constitucional, enquanto que a subsidiaridade da lei ordinária a CRA ( subsidieriedade ascendente) é fundamentadora, serve para dar sentido e coerência a própria norma da lei ordinaria no âmbito do sistema normativo ( lembrando que a ordem jurídica é um sistema em forma de pirâmide).
Chegados a esse porto, forma- se facilmente o seguinte raciocinio silogístico: Se o DP é a norma especial, porque competente para regular o EE, e se o DP que encontra fundamento na CRA, não faz qualquer remissão a esta ou a qualquer outra, logo, o DP recusa a competência da CRA ( e do EMJ) para regular as excepções da regra de interdição da cerca sanitária.
Então para a escola JUDICIARISTA a recusa de competência do DP gerou uma contradição no âmbito do sistema distanciando as suas soluções da própria CRA. Afinal, se o direito a livre circulação é um direito dos juizes no âmbito da CRA, ao DP cumpria reconhecer esse direito nas excepções a circulação durante o EE por meio de normas remissivas. Podemos dizer que essa contradição quebrou a harmonia entre as normas interessadas no caso ( DP, EMJ, CRA) no âmbito do sistema jurídico angolano inspirada pela ideia kelseniana da pirâmide. Contudo, para a escola CONSTITUCIONALISTA, não se fala em recusa de competências, porquanto a CRA não as reclama como tal. Ou seja, para a CRA a ordem normativa dada ao DP para respeitar os direitos dos juizes constantes do art. º 58 º , n º 5 durante o EE não foi violada, pois os direitos não contemplam a live- circulação. Logo, o EMJ não pode reclamar a sua aplicação porque o DP respeitou a competência atribuída pela CRA para regular o EE, regulando- o nos limites desta. Ou seja, para efeitos da CRA o EMJ não pode ser aplicado durante o EE.
IV. O PROBLEMA LEGÍSTICO
Supondo que a escola JUDICIARISTA tenha absoluta razão em reclamar o direito a livre circulação previsto no EMJ com fundamento no art. º 58. º , n º 5 da CRA, cumpriria ao DP reconhecer essa competência através de normas de remissão em homenagem a harmonia do sistema jurídico angolano. Então, para satisfazer a pretensão da escola JUDICIARISTA, o DP teria de sofrer alterações na sua estrutura legística. Logo se tivéssemos que corrigir a sistemática das normas do DP para que o EMJ e a CRA tenham força no caso da cerca sanitária, teríamos que reformular o texto do art. º 9 º do Decreto Presidencial n. º 120/ 20 acrescentando no seu teor: “o disposto no número anterior - citando a disposição que limita a circulação - não se aplica as entidades previstas no art. º 58 º , n. º 5 da CRA nem nos casos previstos no art. º 33 º do Estatuto dos Magistrados Judiciais”. Trata- se de uma remissão explícita. Essa remissão ressalvaria a aplicação das normas em questão. Mas também podíamos usar uma remissão implícita começando por dizer “Salvo disposição legal em contrário, a cerca sanitária só pode ser atravessada nos seguintes casos.: “. Aqui temos uma remissão que reconhece a competência de todas as outras normas aplicáveis
ao caso. Seja o EMJ seja a CRA ou quaisquer outras. Portanto, para que juiz possa ser abrangido pelas excepções a cerca sanitária é necessário que o DP reconheça a competência do EMJ e da CRA para que estes possam ser aplicados durante a EE. Fora disso a EE só pode ser regulado ao abrigo do DP excluindo todas e quaisquer outras normas interessadas nessa matéria.
Tudo para dizer que sem as normas remissivas que reconheçam a competência das demais leis, o DP vigora só com todo o seu poder absoluto regulando o EE e nenhum outro diploma pode ser invocado, nem mesmo a CRA. Essa é a triste constatação que está a escapar a escola JUDICIARISTA no processo de interpretação do caso. Nesse contexto, a escola JUDICIARISTA só pode lamentar do eventual erro da técnica legística empregada durante a feitura do DP que, ao não formular normas remissivas, prejudicou a aplicabilidade das demais normas do sistema jurídico angolano interessadas no caso.
Para a escola CONSTITUCIONALISTA a falta de remissão do DP a qualquer outra norma no caso, não viola o disposto no art. º 58 º , n. º 5. Portanto, o DP encontra o seu fundamento harmonizado a CRA tornando íntegra a pirâmide kelseniana do Direito.
V. A POSSÍVEL SOLUÇÃO DO CASO Quanto aos conceitos normativos operados na discussão, o problema que deve ser resolvido para pôr fim a disputa entre as duas correntes é o de saber se a livre- circulação reconhecido aos juizes pelo EMJ tem fundamento ou não no art. º 58 º , n º 5 da CRA. Tendo fundamento, o DP torna- se inconstitucional por não ter reconhecido a competência regulatória da CRA concretizada através do EMJ. Pois, a falta de remissão do DP equivale a proibição de aplicação de qualquer outra norma ( genericamente diplomas legais) durante o EE. Essa solução homenageia uma outra regra de hermenêutica normalmente enunciada através do brocardo “em Direito público o que não é permitido é proibido”. Logo, se o DP proibe, o EMJ não pode ser aplicado. Proibindo os juizes de circular, tendo esse direito, o DP deve ser declarado inconstitucional quanto a interdição da circulação dos juizes.
É evidente que a regra de subsidiaridade estabelecida entre as normas é de aplicação recíproca, estabelece- se da constituição para a lei ordinária e viceversa, a semelhança de um circuito eléctrico. Entretanto, a CRA não pode ser fundamentada pela lei ordinária, essa relação contraria o sentido kelseniano de fundamentação do sistema, porque não é o CRA que encontra fundamentação no DP, é exactamente o contrário.
Logo, a subsidiaridade da CRA para a lei ordinária ( subsidiaridade descendente) é concretizadora, serve para garantir a melhor e a mais adequada aplicação da própria norma constitucional, enquanto que a subsidiaridade da lei ordinária a CRA ( subsidiaridade ascendente) é fundamentadora, serve para dar sentido e coerência a própria norma da lei ordinária no âmbito do sistema normativo ( lembrando que a ordem jurídica é um sistema em forma de pirâmide).
Contudo, para a escola CONSTITUCIONALISTA, não se fala em recusa de competências, porquanto a CRA não as reclama como tal. Ou seja, para a CRA a ordem normativa dada ao DP para respeitar os direitos dos juizes constantes do art. º 58 º , n º 5 durante o EE não foi violada, pois os direitos não contempla a live- circulação. Logo, o EMJ não pode reclamar a sua aplicação porque o DP respeitou a competência atribuída pela CRA para regular o EE, regulando- o nos limites desta. Ou seja, para efeitos da CRA o EMJ não pode ser aplicado durante o EE.
Assim, a escola JUDICIARISTA entra num beco sem saída. Pois, ainda que consiga fundamentar a inconstitucionalidade do acto administrativo ( retenção do juiz) protagonizado pelos agentes da PN não bastará invocar a invalidade do acto com fundamento no art. º 6. º da CRA que impõe a supremacia constitucional, ainda teria que aguardar por um expediente que confirme essa mesma invalidade através de uma declaração de inconstitucionalidade do DP a ser proferida pelo Tribunal Constitucional, enquanto órgão jurisdicional competente para o efeito. Afinal, o acto impeditivo dos agentes da PN encontra fundamento na norma inconstitucional que deve ser afastada da ordem jurídica.
Sem essa DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE o DP, apesar de inválido, mantém a sua vigência regulando competentemente o EE. As opções sobre a escolha do expediente, se é pela via do controlo abstracto da constitucionalidade ou se é pelo controlo concreto da constitucionalidade depende apenas da parte interessada que queira pôr em causa a validade do DP. De nada valem os pronunciamentos públicos do Conselho Superior da Magistratura Judicial ( CSMJ) nessa questão, tentando liberar a passagem do juiz contra a ordem da PN. A decisão do CSMJ é meramente opinativa, ou seja, para a sociedade não passa de um parecer, uma opinião dos juizes. Pois não é um órgão de soberania como são os tribunais que podem modificar o direito positivo, reinterpretando - o pela via jurisprudencial através de sentenças ou acórdãos.
Até lá, apenas uma solução se apresenta exequível para que os juizes circulem ao arrepio das limitações da cerca sanitária, consiste em o Ministério da Justiça e Direitos Humanos aprovar um despacho executivo que determine a JUSTIÇA como um serviço essencial durante o EE para que todos os seus operadores ( juizes, procuradores, advogados, escrivães, testemunhas, declarantes, reús, guardas prisionais, etc) possam circular sendo justificados pelas excepções a cerca sanitária como serviços essenciais. Essa competência é conferida pelo próprio DP que regula o EE como norma especial.
Portanto, os agentes da PN continuam embuidos de autoridade quando aplicam o DP em prejuízo de quaisquer outras normas para as quais o DP não faça qualquer remissão. Nesse quesito, a interpretação do Direito foi bem feita pela PN,