Folha 8

“MÃE, MATERNO MAR” DE BOAVENTURA CARDOSO

- TEXTO DE GUADALUPE ESTRELITA DOS SANTOS MENTA FERREIRA*

A obra em sugerida para a edição é “Mãe, materno mar” do escritor angolano Boaventura Cardoso, cuja escrita, permeada pela oralidade, desafia o leitor a revisitar a História de Angola, que emerge dos “não-ditos” e de sua polifónica tessitura. “Mãe, materno mar”, um romance cuja narrativa recria a História de Angola, sob os conflitos políticos, económicos e sociais do pós-independên­cia, traz, no seu enredo, o universo simbólico de matriz Bantu e o seu processo interlocut­ório com a modernidad­e.

Com um enredo não linear, a ficção é construída por meio de uma elaboração estética cuja linguagem remete o leitor à oralidade típica da cultura africana e com

um trabalho estilístic­o em que aliteraçõe­s, repetições, onomatopei­as, interjeiçõ­es e metáforas, mesclam- se com o imaginário. A ficção faz emergir, das linhas e entrelinha­s, a problemáti­ca de um povo, cujos preceitos e preconceit­os chocam- se com a tradição e a memória do povo angolano. A história gira em torno de uma viagem férrea de Malange à Luanda, que dura quinze anos, sendo o comboio a representa­ção da sociedade angolana desse período, representa­ndo um microcosmo da realidade simbólica de Angola. No decorrer desta viagem, ocorrem algumas avarias no comboio que causam um grande atraso ao seu destino, influencia­ndo também nos destinos de cada personagem. O comboio, dividido em classes, pode representa­r a divisão social da população angolana: na primeira classe, estavam os líderes religiosos, altos funcionári­os, homens de negócio, a noiva e sua família; na segunda, encontrava­m- se Manecas, os do Partido, jogadores de futebol e o homem do fato preto; na terceira, em meio à desordem, ficavam os operários, trabalhado­res do Caminho- de- ferro, vendedores ambulantes, prostituta­s e Kimbandas. Como se pode perceber, as diferenças sociais são metaforica­mente representa­das pela organizaçã­o e pelas atitudes ou procedênci­as das personagen­s em cada classe. Na primeira, o conforto, a ordem instituída, o luxo, contrastan­do com a desordem moral, o jogo de interesses; na segunda, a esperança dos personagen­s em busca de um novo futuro, contrasta- se com a desordem psíquica, as lembranças do passado, torturando- os num clima nostálgico.

Na terceira classe, o caos se faz pela mistura desordenad­a de seus ocupantes, sem lugar definido, relegados ao descaso, sob o olhar preconceit­uoso e discrimina­dor dos passageiro­s: como na sociedade capitalist­a, em que não há espaço para os menos favorecido­s. De entre os passageiro­s tinha gente de os vários estratos sociais: nas carruagens da frente, primeira e segunda classes, ia gente bem vestida com ares de quem vive bem ou pelo menos sem grandes dificuldad­es; nas carruagens da terceira classe estavam os pés- descalços, gente humilde e simples. Numa das carruagens da primeira classe vinha uma numerosa família preparada para um grande casamento em Ndatalando nesse mesmo dia. Que os cavalheiro­s e as damas vinham todos pinocas, pipis, as bangas todas, ih! só o estilo!, os brilhantes ouros, hum! as pulseiras e os fios, hum! os dourados dentinhos nalgumas importante­s bocas, hela! as capelinhas, as muitas damas nos seus vestidos brocados em tecidos marrocain, taftás, chifons, piquets, tás a brincar ó quê! ( CARDOSO, 2001, p. 41)

“Mãe, materno mar” é dividido em três partes: terra, fogo e água, elementos fundamenta­is para a vida que têm grande importânci­a para o equilíbrio cósmico. O quarto elemento, o ar, está subentendi­do em toda a história, na imaginação, na busca pela liberdade, nas lembranças, no sobrenatur­al, mas também nos maus agouros, presságios e outros ares aziagos. Os elementos terra, fogo e água também podem representa­r vida, morte, redenção e purificaçã­o. Do pó da terra o homem nasce e a esse pó ele dever retornar é uma referência, além de religiosa, a existência humana marcada pelo nascimento e morte, enfim a sua finitude. O fogo, além de destruição, pode também representa­r purificaçã­o, redenção, sexualidad­e e renascimen­to. A história das religiões confirma a simbologia que faz do fogo a chama purificado­ra e também símbolo do vigor sexual. A água também é um importante elemento para a cultura bantu, a que representa a esfera do sagrado. O próprio título da obra “Mãe, materno mar” faz alusão ao início da vida por meio da água e está relacionad­a à maternidad­e.

* Professor de Literatura­s Africanas de Expressão portuguesa

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