“MÃE, MATERNO MAR” DE BOAVENTURA CARDOSO
A obra em sugerida para a edição é “Mãe, materno mar” do escritor angolano Boaventura Cardoso, cuja escrita, permeada pela oralidade, desafia o leitor a revisitar a História de Angola, que emerge dos “não-ditos” e de sua polifónica tessitura. “Mãe, materno mar”, um romance cuja narrativa recria a História de Angola, sob os conflitos políticos, económicos e sociais do pós-independência, traz, no seu enredo, o universo simbólico de matriz Bantu e o seu processo interlocutório com a modernidade.
Com um enredo não linear, a ficção é construída por meio de uma elaboração estética cuja linguagem remete o leitor à oralidade típica da cultura africana e com
um trabalho estilístico em que aliterações, repetições, onomatopeias, interjeições e metáforas, mesclam- se com o imaginário. A ficção faz emergir, das linhas e entrelinhas, a problemática de um povo, cujos preceitos e preconceitos chocam- se com a tradição e a memória do povo angolano. A história gira em torno de uma viagem férrea de Malange à Luanda, que dura quinze anos, sendo o comboio a representação da sociedade angolana desse período, representando um microcosmo da realidade simbólica de Angola. No decorrer desta viagem, ocorrem algumas avarias no comboio que causam um grande atraso ao seu destino, influenciando também nos destinos de cada personagem. O comboio, dividido em classes, pode representar a divisão social da população angolana: na primeira classe, estavam os líderes religiosos, altos funcionários, homens de negócio, a noiva e sua família; na segunda, encontravam- se Manecas, os do Partido, jogadores de futebol e o homem do fato preto; na terceira, em meio à desordem, ficavam os operários, trabalhadores do Caminho- de- ferro, vendedores ambulantes, prostitutas e Kimbandas. Como se pode perceber, as diferenças sociais são metaforicamente representadas pela organização e pelas atitudes ou procedências das personagens em cada classe. Na primeira, o conforto, a ordem instituída, o luxo, contrastando com a desordem moral, o jogo de interesses; na segunda, a esperança dos personagens em busca de um novo futuro, contrasta- se com a desordem psíquica, as lembranças do passado, torturando- os num clima nostálgico.
Na terceira classe, o caos se faz pela mistura desordenada de seus ocupantes, sem lugar definido, relegados ao descaso, sob o olhar preconceituoso e discriminador dos passageiros: como na sociedade capitalista, em que não há espaço para os menos favorecidos. De entre os passageiros tinha gente de os vários estratos sociais: nas carruagens da frente, primeira e segunda classes, ia gente bem vestida com ares de quem vive bem ou pelo menos sem grandes dificuldades; nas carruagens da terceira classe estavam os pés- descalços, gente humilde e simples. Numa das carruagens da primeira classe vinha uma numerosa família preparada para um grande casamento em Ndatalando nesse mesmo dia. Que os cavalheiros e as damas vinham todos pinocas, pipis, as bangas todas, ih! só o estilo!, os brilhantes ouros, hum! as pulseiras e os fios, hum! os dourados dentinhos nalgumas importantes bocas, hela! as capelinhas, as muitas damas nos seus vestidos brocados em tecidos marrocain, taftás, chifons, piquets, tás a brincar ó quê! ( CARDOSO, 2001, p. 41)
“Mãe, materno mar” é dividido em três partes: terra, fogo e água, elementos fundamentais para a vida que têm grande importância para o equilíbrio cósmico. O quarto elemento, o ar, está subentendido em toda a história, na imaginação, na busca pela liberdade, nas lembranças, no sobrenatural, mas também nos maus agouros, presságios e outros ares aziagos. Os elementos terra, fogo e água também podem representar vida, morte, redenção e purificação. Do pó da terra o homem nasce e a esse pó ele dever retornar é uma referência, além de religiosa, a existência humana marcada pelo nascimento e morte, enfim a sua finitude. O fogo, além de destruição, pode também representar purificação, redenção, sexualidade e renascimento. A história das religiões confirma a simbologia que faz do fogo a chama purificadora e também símbolo do vigor sexual. A água também é um importante elemento para a cultura bantu, a que representa a esfera do sagrado. O próprio título da obra “Mãe, materno mar” faz alusão ao início da vida por meio da água e está relacionada à maternidade.
* Professor de Literaturas Africanas de Expressão portuguesa