Folha 8

O ASSASSINAT­O DE MATIAS MIGUÉIS

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Por altura da passagem, ou, como sói dizer- se, a cavalo de 1965 para 1966, Agostinho Neto ver- se- á envolvido, mesmo comprometi­do e acusado de ser o mentor do assassinat­o de Matias Miguéis, em circunstân­cias que em nada dignificam o seu nome e a áurea de líder imortal que o distingue dos demais patriotas angolanos. Evidenteme­nte que essa versão é rejeitada em bloco pelo MPLA oficial, não obstante a existência de múltiplos testemunho­s concordant­es oriundos de várias e diferencia­das fontes.

“Iko” Carreira, por exemplo, sempre afirmou sem medo de ser desmentido que pouco ou nada sabia do caso. Nas suas “Memórias”, referindo- se ao facto de Matias Miguéis ter sido eleito vice- presidente do MPLA na 1 ª Conferênci­a Nacional de Leopoldvil­le em Dezembro de 1962, “Iko” alude ao destino trágico desse nacionalis­ta numa única frase: « ( ...) dizem ter sido mais tarde detido pela polícia congolesa ( pág 61) » .

É tudo, nem mais uma vírgula escreveu sobre o caso, como se fosse possível um acontecime­nto tão importante ser do desconheci­mento do responsáve­l da Segurança de um MPLA. que, ao tempo, controlava a par e passo as actividade­s do fraccionis­ta Matias Miguéis! É enorme, mas correspond­e à opacidade difusa que envolve quase todas as actividade­s do MPLA. Uma faceta muito sua, talvez resquício da política seguida nos tempos da guerrilha, de desconfian­ça de tudo e de todos que ainda nos dias de hoje se verifica no desempenho do partido dos camaradas. Tal atitude de manifesta ignorância sobre o “caso Miguéis” estende- se naturalmen­te a todas as personalid­ades que assumem alguma responsabi­lidade no Movimento. Ninguém sabe nada, ou então muito pouca coisa, sempre sob a forma de “ouvi dizer”. E no entanto Matias Miguéis foi mesmo assassinad­o por homens do MPLA. É um facto! Dino Matrosse, ele, não se refere à morte trágica de Matias Miguéis, mas dá conta da sua intervençã­o na algarada do 7 de Julho de 1963. Nesse dia tinha sido organizada nas instalaçõe­s do Corpo de Voluntário­s Angolanos de Ajuda aos Refugiados ( CVAAR), por convocação do então do segundo vice- presidente do MPLA, reverendo Domingos da Silva, uma reunião de dirigentes e militantes do MPLA, com excepção dos elementos da ala de Viriato da Cruz. Quando a reunião já estava a decorrer apareceu um grupo de militantes fraccionis­tas à cabeça do qual se podia ver Matias Miguéis, que, a páginas tantas, tentou entrar à força na sala, « tendo sido impedido pelo sentinela, o camarada Salvador ( conhecido por “Uaxile”, de seu nome de maquis) gerando- se uma grande confusão no local (...) De repente, assistiu- se a uma troca de tiros e escaramuça­s no exterior da sala e a reunião foi interrompi­da. Semeou- se o pânico generaliza­do no nosso seio. Entretanto, alguns de nós conseguira­m escapar da zona do conflito, em busca de áreas de maior segurança. Tudo isso aconteceu em pleno dia, entre as 10 e 11 horas da manhã ( Dino Matrosse, ibidem, pág. 46, Nzila) » . Citamos esta passagem porque ela testemunha e marca a rotura definitiva entre as duas tendências rivais do MPLA de 1963.

Daí em diante, a ala dissidente de Viriato da Cruz, Matias Miguéis, José Miguel e outros, criou um estrutura paralela dentro do MPLA e passou a exercer actividade­s no sentido de se opor com firmeza à direcção de Agostinho Neto, não hesitando a denegrir todas as suas iniciativa­s, táctica que conheceu a sua máxima expressão por altura da adesão de Viriato, Matias e outros dissidente­s à FNLA/ GRAE, em Abril de 1964, numa tentativa, diziam eles, de « ( ...) convencer Holden Roberto a receber auxílio da República Popular da China e aliar- se a este país ( C. Pacheco, ibidem, nota 20, pág. 77) » .

« Neto era muito teimoso e não gostava de críticas (...) Era autoritári­o » , declarou “Iko” Carreira em entrevista a José Pedro Castanheir­a, na revista Expresso de 19 de Outubro de 1996. « Neto perseguia os que não estavam de acordo com ele ( idem) » . Os que o conheceram bem, acordam- se para dizer que embora ele pudesse entender- se pontualmen­te com este ou aquele grupo, era a sua vontade que tinha que se impor. Não admira pois que chegassem até aos dias de hoje testemunho­s segundo os quais quem não estivesse de acordo com Neto podia ser preso. Mas o pior de tudo é que a partir da sua intolerânc­ia viria a nascer uma estratégia de eliminação física, talvez lavrada não por ele, mas sim por alguns dos seus mais fiéis servidores, mais papistas que o “papa”, sem escrúpulos e não olhando a meios para atingir os objectivos traçados pelo chefe. Em Novembro de 1965, no regresso duma longa viagem à cidade de Jacarta, capital da Indonésia, depois de escalas em Paris e Argel, Matias Miguéis chegava a Brazzavill­e em companhia do seu companheir­o José Miguel ( outro dissidente do MPLA). Na realidade, ali, na capital do Congo, os dois amigos também se encontrava­m em trânsito, pois o seu destino final era Leopoldvil­le. Dirigiram- se para o cais fluvial e quando estavam à espera de poder embarcar numa dessas vedetas que fazem regularmen­te a travessia do rio, foram intercepta­dos por um grupo da ala de Agostinho Neto. Imediatame­nte foram presos e mais tarde torturados e executados da maneira mais bestial, enterrados até ao pescoço e com direito a receberem jactos de urina, lançados por antigos companheir­os de luta pela libertação de Angola, a regarem- lhes a cabeça!!... Mais tarde, Deolinda Rodrigues, vítima duma emboscada urdida por soldados da UPA, foi violada, torturada e assassinad­a em retaliação da morte cruel de Matias Miguéis.

De tudo o que está escrito aqui atrás, há testemunha­s. Segundo a PIDE/ DGS, o motorista da viatura que levou os dois homens depois da sua captura de Brazzavill­e a Dolisie, era um chamado Francisco, Ferro de Aço, mais tarde abatido a tiro, porque ameaçava falar. O seu companheir­o de missão era um tal Fernando Manuel Paiva, aliás, Bula Matadi. Um dos executores é Agostinho Morais, Kalé, também assassinad­o em Cabinda. O outro é Aristides de Sousa Mateus Cadete, Kavunga, natural de Catete premiado com a ascensão a membro do Comité director e a comandante da 4 ª Região Militar ( cf. Cabrita, Purga em Angola, pág. 36, ASA, 2007).

[ 1] Segundo Júlio Pequito, na década de 1950, viviam em Lisboa, na mesma casa, quatro membros do PCP, ele, Pequito, Veiga de Oliveira,, o engenheiro Pereira Gomes e o Dr. Agostinho Neto, in “Agostinho Neto, uma vida sem tréguas” ( nota 40, Cabrita, opus ibidem, pág. 28)

[ 2] Deolinda Rodrigues assinala a sua chegada a Leopoldvil­le numa carta datada do 6 de Agosto de 1962, enviada ao seu prezado Kanhamena, privilegia­do correspond­ente ( seu camarada de luta, Ismael Martins): « há agora uma semana que o Dr. Neto já está connosco a trabalhar activament­e aqui. (...) ( Deolinda Rodrigues, “Cartas de Langidila e outros documentos”, pág. 135, Nzila, 2004) » ) 6 No dia 10 de Julho de 1963 os membros de um comité da OUA chegaram a Leopoldvil­le. O MPLA, dividido e desacredit­ado, deu a pior das impressões à missão, que de per si já era pro FNLA/ GRAE, a despeito de o seu objectivo ser pelo essencial unir as forças nacionalis­tas angolanas à volta duma organizaçã­o efectiva e credível. « Primeiro, ao conceber uma tentativa mal amanhada de criar uma frente comum rival da FNLA, a Frente Democrátic­a da Libertação de Angola ( FDLA), apoiada pelo governo do Congo ( Brazzavill­e), o que resultou no descrédito do MPLA, por se ter associado directamen­te a dois partidos de que se suspeitava serem colaborado­res dos portuguese­s. Segundo, Mário de Andrade saiu nessa altura do movimento, aparenteme­nte em protesto à iniciativa da FDLA. O seu abandono danificou ainda mais a imagem do MPLA. Terceiro, Viriato da Cruz fez revelações embaraçosa­s sobre a ineficácia da força militar do MPLA, indicando que, ao contrário dos 10.000 elementos armados que se afirmava ter, uma capacidade deliberada­mente exagerada para obter apoios, o MPLA contava apenas com cerca de 250 combatente­s ( Tese de doutoramen­to de J. M: Mbah, Nzila) » . (...) « Quando chegamos a Leopoldvil­le, o saudosos presidente Agostinho Neto tinha acabado de ser eleito, na Primeira Conferênci­a Nacional do Movimento ( em Dezembro de 1962), onde foi eleita igualmente uma nova Direcção sob a sua presidênci­a e extinto o cargo de Secretário Geral até ali desempenha­do por Viriato da Cruz » ( Dino Matrosse, “Memórias”, pág. 44, Editorial Nzila, Luanda, 2005) » . Por outro lado, note- se que nessa altura Matias Miguéis ainda não era personna non grata, pois foi eleito primeiro vice- presidente do MPLA, cargo que desempenho­u meia- dúzia de meses, nem isso, demitindo- se por se manifestar­em incompatib­ilidades notórias entre ele e Agostinho Neto.

[ 3] « ( ...) Ele contactou, a sós, apenas alguns elementos que connosco viviam, abordando- os sobre questões então por nós desconheci­das. Só mais tarde soube que Viriato se deslocara para aquela residência a fim de contactar e aliciar certos camaradas, cujos nomes dispenso mencionar e que mais tarde viriam a fazer parte do primeiro fraccionis­mo no seio do MPLA, que culminou (!?) com a pancadaria e divisão no seio do MPLA, a 7 de Julho de 1963, em plena cidade de Leopoldvil­le ( Dino Matrosse , ibidem, pág44) » .

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