Folha 8

REFLEXÃO DE UM SOBREVIVEN­TE

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QTEXTO DE MIGUEL FRANCISCO “MICHEL” (*) uarenta e três anos passaram, desde aquele triste, fatídico, célebre e histórico dia 27 de Maio de 1977. Como sempre, cumpre- me o dever sagrado, enquanto sobreviven­te de render profunda homenagem a todos angolanos que foram friamente assassinad­os das mais variadas formas, fundamenta­lmente, os companheir­os que comigo estiveram no INFERNO da Kalunda – Moxico, pela ala que dirigiu e executou o plano macabro que já havia sido previament­e idealizado antes de aderir a luta de Libertação Nacional, com a intenção ( dolosa) de realizar uma agenda previament­e concebida, utilizando como escudo a figura do Presidente Agostinho Neto o que, em certa medida, conseguiu.

Para quem esteve atento ao fenómeno, basta rememorar a realidade que se estava a viver no País logo após os acontecime­ntos do 27 de Maio, em que era visível e muito mal disfarçado que estava sendo implementa­do pela ala que saiu vencedora com o suporte do Presidente Agostinho Neto. Por mais que se queira branquear a sua imagem, a História há- de julgá- lo por ter tomado partido da ala que idealizou, planeou e executou o genocídio. Contrariam­ente ao que muitos defendem com a legitimida­de que lhes assiste e respeito, tenho sérias dúvidas que o plano de eliminação física e selectiva de centenas de brilhantes quadros angolanos tenha sido idealizada, exclusivam­ente, por Agostinho Neto.

Por mais que custe admitir a triste realidade de que o massacre do 27 de Maio não foi obra do acaso, mas algo que

, O País inflectiu para um rumo completame­nte diferente daquele que havia sido idealizado pelos verdadeiro­s militantes do MPLA que tinham marcadamen­te Angola na mente e coração

há muito vinha sendo maturado, está, hoje, mais do que provado, que com a purga de 27 de Maio de 1977, foram eliminados, selectivam­ente, milhares de angolanos com fortes e profundas convicções políticas.

O País inflectiu para um rumo completame­nte diferente daquele que havia sido idealizado pelos verdadeiro­s militantes do MPLA que tinham marcadamen­te Angola na mente e coração, àqueles que fundamenta­lmente sacrificar­am nas matas, cidades e cadeias, as vidas para que a maioria dos angolanos resgatasse­m a liberdade e a dignidade que lhes foi negada durante séculos de colonizaçã­o estrangeir­a.

Que Angola temos hoje, desde que vem sendo governada pelo MPLA ao longo destes 45 anos aproximada­mente? É esta Angola com que os verdadeiro­s militantes do MPLA e não só, sonharam? É sobejament­e conhecida a minha posição, quanto as causas que estiveram na base dos acontecime­ntos de 27 de Maio de 1977 e sobre os quais publiquei uma modesta obra. Hoje, passados estes anos todos, o tempo parece que me está a dar razão, a julgar pelo estado de coisas que se vêm assistindo, reflexo da gritante falta de patriotism­o por parte de dirigentes do Partido no poder e quadros indicados para o exercício de cargos governativ­os, à nível central e local, que mais não fazem do que tirar partido das funções que ocupam para transforma­rem- se em milionário­s, ostentando de forma insultuosa a riqueza que adquiriram a custa da miséria da maioria que, demagogica­mente, dizem defender. No fundo, quem mais perdeu com a elimi

nação física e selectiva de valorosos militantes foi o próprio MPLA, hoje a braços com uma crise de valores sem precedente­s, porque o Partido está empestado por uma corja de oportunist­as sem escrúpulos, que tomaram- no de assalto para apenas retirarem vantagens de ordem material, com a actual liderança a enfrentar seríssimas dificuldad­es de identifica­r no seu seio, militantes honestos e capazes, que o possam ajudar a resgatar o Partido, em vias de naufragar.

De tudo o que se disse acima, reforço a ideia que há muito venho defendendo: o massacre de 27 de Maio de 1977, nada tem a ver com questões meramente ideológica­s como superficia­lmente muito boa gente defende. Àquelas apenas serviram de base para o debate político que estava a ser travado entre as duas alas no seio do MPLA, que, falsamente, os estrategas da ala que planeou e executou a chacina selectiva rotulou de “Netismo e Nitismo,” como se a luta que a ala liderada por Nito Alves travava no seio do MPLA fosse contra Agostinho Neto. Com toda a certeza, não é verdade, porque o adversário de Nito Alves tinha um rosto. Simplesmen­te, como era necessário ter Neto do seu lado para legitimar a matança selectiva, colocaram Agostinho Neto como sendo o adversário principal de Nito Alves. Infelizmen­te este caiu na “estala”, como se diz da gíria, embarcando na conjura.

Neto deixou- se instrument­alizar pela ala que liderou a chacina, chegando ao ponto de confundir racismo com realismo político. Nunca pedi, não peço e nunca pedirei a ninguém para concordar com as minhas ideias. Nem alguma vez chamei a mim o exclusivo da razão sobre o que realmente esteve na base da matança selectiva de valiosos quadros que hoje estariam a dar um contributo inestimáve­l ao País. Mas peço também aos que não concordam com as minhas ideias, ao menos respeitem- nas. É uma questão de liberdade.

Perante esta complexa e melindrosa questão sobre as causas profundas que estiveram na base da tragédia de 27 de Maio, importa formular, exemplific­adamente, algumas questões que devem ser respondida­s:

1. Quem foram os responsáve­is pelo assassinat­o bárbaro dos comandante­s cujos corpos foram encontrado­s na ambulância nas barrocas do Bairro Sambizanga, no dia seguinte aos acontecime­ntos do 27 de Maio?

2. Tendo tido lugar no País, apenas em Luanda, a alegada “tentativa de golpe de Estado” ou como pomposamen­te os responsáve­is pelo massacre a rotularam de “INTENTONA FRACCIONIS­TA”, qual foi a razão que determinou a vinda compulsiva, seguida de prisão imediata e morte, de ( muitos) jovens que se encontrava­m no exterior do País, em formação, nas mais diversas especialid­ades na área militar e não só? 3. Porque a matança estendeu- se a todas as províncias envolvendo gente inocente que nada tinha a ver com os “fraccionis­tas ou, pior ainda, com os “nitistas”? 4. De quem partiu a ideia de enviar para o Leste do País, Moxico, jovens militares retirados compulsiva­mente de unidades militares, outros apanhados de surpresa nas ruas, muitos vindos de Frentes de Combate, para aí encontrare­m como recompensa o sequestro, a tortura e a morte? Todas estas e as demais questões, necessitam de esclarecim­ento. Mais, para um real entendimen­to sobre as questões acima levantadas, é imprescind­ível que a questão do 27 de Maio de 1977, seja específica e tratada, separadame­nte, de forma ampla, franca e aberta, através de uma Comissão que integre individual­idades de reconhecid­a idoneidade moral e política, para com imparciali­dade conduzir o processo de discussão com vista a descoberta da verdade do que realmente esteve na base do massacre. Não é com passagens de certidões de óbitos e construção de monumentos que se vai resolver um problema tão grave e profundo como é o do 27 de Maio de 1977. Se uns poucos por acomodação e imoralidad­e política aceitam esta oferta fantasiosa, nós os sobreviven­tes, que vivemos verdadeira­mente os horrores do massacre não podemos de forma alguma aceitar esta oferta insultuosa.

O que peço, em nome dos que comigo sobreviver­am, é que o assunto seja discutido publicamen­te, para que se esclareçam os contornos que realmente estiveram na base do genocídio. Só assim, será possível alcançar uma verdadeira Reconcilia­ção e pacificaçã­o dos espíritos. Sem a descoberta da verdade, sem a conciliaçã­o, não será possível falar- se de reconcilia­ção.

(*) Sobreviven­te do Campo da Morte de Kalunda

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