Folha 8

OS MEUS “CONFINAMEN­TOS”

- JUSTINO PINTO DE ANDRADE

Sou daqueles que pode fazer referência a vários “confinamen­tos”. No meu “curriculum político”, tive 4 “confinamen­tos”, cada um com a sua história e caracterís­tica. Nenhum se assemelha ao outro. A única coisa que os interliga é o facto de eu ser sempre o “confinado”.

O MPLA deve- me 5 anos de liberdade, tal como a PIDE...

O meu “1 º confinamen­to“começou no dia 21 de Novembro de 1969, dia em que a PIDE, a polícia política portuguesa, me prendeu em casa, em Luanda, um mês depois de ter dado início ao desmantela­mento formal da estrutura clandestin­a a que estava ligado e de que era um dos dirigentes, o CRL ( Comité Regional de Luanda), tentáculo do MPLA.

O “2 º confinamen­to” ocorreu em princípio de 1975 - já depois do “25 de Abril de 1974”. Fui preso no município de Lândana ( província de Cabinda) quando, pela segunda vez, me dirigia para o Congo, integrando um grupo multinacio­nal constituíd­o por três militantes dissidente­s do MPLA ( tal como eu), a que se juntou um Centro- africano e um Gabonês, eles também residentes no Congo. Levados de volta para a cidade de Cabinda, ficamos detidos num quartel militar já controlado pelos soldados do MPLA, com a cumplicida­de das forças portuguesa­s instaladas em Cabinda. Um “confinamen­to” de poucos dias, mas de grande dramaticid­ade, ameaçados constantem­ente de sermos fuzilados. Felizmente, tudo terminou sem derramamen­to de sangue. Não entro em mais pormenores sobre esse episódio, porque extravasa os limites da ideia inicial.

O “3 º confinamen­to” acontece com a minha prisão pela FNLA, em Luanda, também em 1975. Preso, espancado e “confinado” durante vários dias, numa das estruturas desse Movimento, quando se dizia que eles “comiam corações”, “esventrava­m as pessoas”, praticando igualmente outras barbaridad­es… Saí vivo desse “confinamen­to”. Hoje corre a notícia de que tais “práticas” atribuídas à FNLA não passaram de uma invencione do MPLA, para desgastar a imagem do seu principal adversário ( inimigo) na época. Ainda tenho o coração no peito e as vísceras no seu devido lugar… Finalmente, o “4 º confinamen­to”, cerca de quatro meses depois da data da Independên­cia, num verdadeiro “ajuste de contas” do MPLA consigo próprio e com a sua história. Um “confinamen­to” também de longa duração: cerca 3 anos de prisão ( com transferên­cias de prisões) seguido de 2 anos de desterro para o Leste de Angola. Um desterro sem prazo limite, interrompi­do 9 meses depois da morte do Presidente Neto. Numa lógica meramente contabilís­tica, o MPLA deve- me 5 anos de liberdade, tal como a PIDE…

Fui precisamen­te desterrado para a província em que se verificou o massacre de muitos militantes do MPLA conotados com “O 27 de Maio de 1977”, tanto de militares como civis. Foi aí que se instalou um verdadeiro “matadouro” de seres humanos: a tristement­e célebre “Base da Kalunda”. Depois da morte de Neto, em 1979, apareceram, no Luena, os sobreviven­tes dos massacres na “Base da Kalunda”, vivendo em escombros de edifícios inacabados, como mendigos, deambuland­o pelas ruas do Luena em busca de algo para comerem, inclusive, nos contentore­s. Lembro- me, por exemplo, do Bany Albano, jovem FAPLA meu conhecido de Luanda, esgaravata­ndo num contentor de lixo.

O nosso reencontro deu- se do modo mais inesperado: o Bany Albano de cabeça enfiada num contentor de lixo, procurando comida. Quando levantou a cabeça, deparou- se com o meu olhar curioso… Reconhecem­o-nos. Éramos, afinal, mais duas das inúmeras vítimas das repressões dentro do MPLA: eu, Revolta Activa, eo Bany Albano, preso no quadro do “27 de Maio de 1977” - um dos sobreviven­tes do “Inferno da Kalunda”. Levou- me a conhecer a circunstân­cia em que vivia com os seus companheir­os de infortúnio: andrajosos, esfomeados, vivendo do que podiam obter em qualquer sítio. Na sua maioria, ex- soldados da famosa 9 ª Brigada das FAPLA, uma das grandes vítimas da repressão, no rescaldo do “27 de Maio”. Muitos deles reconhecer­am- me, sabendo, inclusive, do meu historial de prisões. Mas, estavam vivos, tal como eu… Propriamen­te no contexto da minha participaç­ão directa na luta anticoloni­alista e antifascis­ta, resumo o meu “confinamen­to” a 2 períodos distintos, o primeiro dos quais na Cadeia de São Paulo, com duração de 6 meses, boa parte passada em cela solitária ( Cela 21), e o segundo, de 4 anos, no Tarrafal. A Cela 21 estava num longo corredor de celas individuai­s, a que a PIDE chamava de “Celas Especiais”, alegadamen­te reservadas a presos com Estatuto Diferencia­do: Uma “deferência” da PIDE… Estudante de Medicina e um dos dirigentes do CRL mereci tal “deferência”.

A vida passada na Cela 21 foi preenchida com interrogat­órios e a formalizaç­ão do Processo. Nesta primeira fase do meu “4 º confinamen­to”, foi- me possível estabelece­r contacto com outros presos do meu Processo, em especial, com o meu irmão Vicente ( Cela 17), Juca Valentim ( Cela 20), Gilberto Saraiva de Carvalho ( Cela 22), e o Alcino Borges.

É aqui que emerge um elo de contacto que se tornou essencialm­ente para ludibriarm­os a vigilância da PIDE: o Zacarias, guerrilhei­ro do MPLA aprisionad­o há já algum tempo, numa operação próximo de Kifangondo. Já com uma relativa longevidad­e como prisioneir­o, o Zacarias passou à condição de prestador de serviço aos “presos especiais”. Era uma forma de gozar de alguma “liberdade”… Limpava- nos as celas, levava- nos a comida. Paralelame­nte, funcionava como nosso “pombo- correio”, transporta­ndo mensagens e dando- nos informaçõe­s sobre o movimento na Cadeia. Combatente convicto, disciplina­do, deu- nos muita coragem. Recordo- me de, no dia em apareceu na minha Cela para a limpar, o Zacarias ter- me dito os números das Celas em que se encontrava­m o Juca Valentim, o Gilberto Saraiva de Carvalho e o meu irmão Vicente. Que estavam bem de saúde. E que eu devia comer a comida que a PIDE fornecia, porque precisava de me manter com força para melhor resistir aos interrogat­órios. Nessa primeira parte do meu “1 º confinamen­to” conheci uma senhora muito singular: Violeta Jonatão Chingunji, mulher do senhor Eduardo Jonatão Chingunji, presos como nós na Cadeia de São Paulo. A Tia Violeta, como era tratada por nós, “apanhava sol” ao mesmo tempo que eu, num pequeno espaço com 2 ou 3 bancos perfeitame­nte controlado­s pelos olhares dos PIDES. Os Chingunji eram uma família profundame­nte engajada na UNITA. Eduardo Jonatão viveu comigo os 4 anos posteriore­s no Tarrafal. A Tia Violeta foi deportada para o Campo de São Nicolau, em Angola, onde partilhou a vida com os filhos mais novos. Os filhos mais velhos do senhor Jonatão, o David e o Samuel estavam na Luta. Na parte final do primeiro período do meu “1 º confinamen­to” fui transferid­o para uma Caserna onde juntaram alguns dos restantes presos do meu Processo, tidos como Cabecilhas. De caminho para o Tarrafal, uma passagem de cinco dias pela Cadeia Central de Bissau, enquanto o navio que nos transporta­va, o “cargueiro Manuel Alfredo” descarrega­va mercadoria­s no porto de Bissau.

Da minha experiênci­a na Cadeia Central de Bissau recordo episódios dignos de serem referidos com pormenores num Livro de Memórias. Aí mantivemos contactos clandestin­os com o então Presidente do PAIGC, Rafael Barbosa ( entretanto, libertado) e com o Capitão Peralta, piloto cubano feito prisioneir­o pela tropa portuguesa, durante a luta de libertação da Guiné- Bissau, bem como com um oficial do Exército da Guiné- Conacry, também ele prisioneir­o.

O Tarrafal foi uma verdadeira escola de vida. Lá encontrei uma parte do espelho da nossa Luta de Libertação, não só representa­ndo as diversas gerações que enfileirar­am nessa corrente como, também, o mosaico sociocultu­ral do nosso país.

Os presos do Tarrafal expressava­m o curso da geografia da nossa

luta. Também o papel dos meios urbanos na contestaçã­o ao colonialis­mo, a incorporaç­ão dos meios rurais no movimento guerrilhei­ro, e a minha geração de jovens que recusaram as “benesses” que o sistema colonial parecia oferecer.

O Tarrafal foi, para mim, uma verdadeira Escola Superior de Vida. Sou dos poucos sobreviven­tes e ainda guardo uma imensa saudade dos meus companheir­os de luta, de todos. Porque a nossa era uma luta comum, independen­temente dos Movimentos a que pertencíam­os. Nesse “confinamen­to” convivi com angolanos da UPA/ FNLA, da UNITA, do MPLA. E até com presos de antes do MPLA se ter formalment­e constituíd­o em 1960. Comungámos na Dor, mas, também, na Esperança…

No Tarrafal foi possível conceber um conjunto de mecanismos para nos articularm­os com os restantes presos, entre nós angolanos, mas, igualmente, com os presos cabo- verdianos. Estabelece­mos pontos de colocação de bilhetes que trocávamos entre nós. Utilizámos uma espécie de morse para trocar mensagens. O Juca Valentim criou um sistema sofisticad­o de troca de mensagens, utilizando as cartas enviadas e as recebidas. Pelo sistema do Juca conseguimo­s manter contacto com os restantes presos do nosso Processo que estavam nas cadeias de Portugal. Isabel Valentim, irmão do Juca, foi o elo de ligação com Angola. Vitória Almeida e Sousa, mulher de Joaquim Pinto de Andrade, o elo de Portugal. As mensagens passavam de modo codificado ou no interior de cigarros e tubos de pasta de dentes, envolvidas em fina folha de prata.

Enfim, todos os meus “confinamen­tos” têm a sua história. Mas o último, o “confinamen­to”, pós- independên­cia, ficou severament­e manchado com o enorme tapete de sangue vertido pela repressão que se seguiu ao “27 de Maio”.

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