AS LEMBRANÇAS DE ONDJAKI EM “AVÓDEZANOVE E O SEGREDO DO SOVIÉTICO”
O escritor angolano Ondjaki surge com o romance “Avódezanove e o Segredo do Soviético”, editado pela Caminho, para nos mostrar que «as lembranças são cócegas invisíveis que ficam dentro das pessoas».
FTEXTO DE TERESA SÁ COUTO
ez bem, Ondjaki, autor também do documentário “Oxa lá cresçam pitangas”, sobre a vida em Luanda, em retomar o tema da infância passada naquela cidade, pois confirmase que os gritos azuis das crianças irmãs dos pássaros cabiam em mais um tomo. É a memória e os seus afectos, transformada em tópico irradiante de sentido, e os seus efeitos no escritor e na criação literária que Avódezanove e o Segredo do Soviético transporta.
« O inchaço do coração / facilita o despalavrear. / a liberdade pode advir / de uma veia » , escreveu Ondjaki no seu livro de poesia Há Prendisajens com o Xão, em versos que ressoam fortíssimos nesta nova narrativa. « Convoco memórias distorcidas para inventar estórias, exerço o direito de atribuir falas aos sonhos » , diz o autor, na correspondência trocada com a poetisa angolana Ana Paula Tavares, incluída no final do livro. Com engenhosos processos de operacionalização da memória, Ondjaki liga a vivência à palavra, funde a realidade na ficção, reconstrói o passado no presente, e trata a memória com linguagem política, porquanto resgata o « tempo dos tugas » , em memórias transmitidas pelos mais velhos às crianças, detém- se na Angola livre que procura o seu caminho, promete levála para o futuro. Assim surgem as figuras reais de familiares, amigos e vizinhos, encenadas na linguagem literária, em interacção com figuras inventadas. Os mesmos processos erigem lugares, soltam situações, descrevem atmosferas e contaminam os fios mais ínfimos, conferindo uma admirável coesão à narrativa; é o caso dos nomes das personagens, reelaborados no significado e significante: porque em Angola não se gosta de nomes feios, surge a Avóagnette, mulher terna e decidida, mais conhecida por Avódezanove por lhe ter sido amputado um dedo do pé; a Avócatarina, para quem « o futuro está cheio de coisas difíceis a acontecerem de modo cada vez diferente » e que, por isso, gostava mais de « adivinhar o passado » ; o Espumadomar, « camarada maluco » que teria ou não um jacaré no quintal, na casota do cão; a prestável vizinha Donalibânia; o camarada Vendedordegasolina; o Velhopescador com a sua canoa Barcoíris e « mãos antigas » que « desfaziam, com toda a paciência do mundo, os nós bem difíceis que as redes tinham » . Também a predominância do tempo verbal no Pretérito Imperfeito marca o relato de um passado que se quer contínuo.
A palavra onde os sonhos acontecem
Na acção central está o sonho das crianças fazerem explodir – ou « desplodir » , palavra que inventam por ser « mais uma palavra de rebentar mesmo, explodir parece uma chama devagarinho » – as obras do Mausoléu do « camarada presidente » Agostinho Neto, levadas a cabo pelos soviéticos. É a revolução dos miúdos da Praia Do Bispo com o direito de participarem na euforia da jovem nação liberta do colonialismo português, mas “ocupada” por novos estrangeiros; é a rebelião pela defesa do que é seu, das suas casas e espaços de brincadeira no poeirento Bairro Azul. É um sonho concretizado na literatura, já que o Mausoléu está lá, e as casas nem foram demolidas, esclarece Ondjaki na já referida correspondência. O movimento narrativo é veloz, na peugada do movimento das crianças da Praiadobispo, com os nomes que já encontrámos no livro Os da Minha Rua – o Pi, chamado de 3,14, a Charlita com os óculos grossos que dividia com as irmãs na hora da telenovela para todas verem bem, o Gadinho, o Paulinho, o Ndalu, que é o narrador – de Ndalu de Almeida, nome verdadeiro de Ondjaki. Todos, sempre « a correr, cada um na direcção dos pontos cardeais da sua missão » , com pausas para a festa do matabicho ou matabichar a correr para voltar à sua missão: ouvir o som bonito que o vento fazia « a passar de voo com curva nas árvores do quintal da Avódezanove, figueira antiga, goiabeira, mangueira, árvore de sape- sape, arbustos, mamoeiro, pintangueira » ; apanhar goiabas e mangas pelos caminhos; rir « gargalhadas redondas que quase se viam desenhadas no ar » ; correr « sem os fios dos papagaios a prenderem uns nos outros – como os nós malucos na rede do camarada Velhopescador » ; bater « forte com os pés na areia para levantar a poeira » ; « adivinhar barulhos » ; « ficar muito quieto, tentar respirar devagarinho e de olhos bem fechados, para escutar, do outro lado dos buraquinhos do pequeno muro, o barulho das lesmas nas pedras do jardim ou a subir as folhas largas que pareciam estradas enormes para as lesmas treparem » ; viver ao ritmo das grandes coboiadas com « bangue- bangue » , como no « A Grande Desforra » , filme mítico para estas crianças e já referido em « Os da Minha Rua » . Como no anterior título de Ondjaki, também nesta narrativa a missão das crianças tem outra grande desforra: a escrita contra o tempo, executada por um adulto que ao espelho se vê criança a retratar um jovem país repleto de soviéticos e cubanos, estes com presença importante na educação e medicina, com os consequentes choques culturais; e as crianças observam os soldados soviéticos conhecidos em Luanda como « formigas azuis » , baptizados na Praiadobispo de « lagostas azuis » , com « fatos azuis feitos de um tecido grosso que dá para fazer bons panos do chão » , divertem- se a imaginar se alguém mandasse esses soldados cantarem o hino, «o sotaque e a letra que eles iam cantar » , registam as reguadas da professora que não entende porque se faz uma redacção com estórias “esquisitas” e lamentam- se por não entenderem as estórias em kimbundu da Avómaria, porque na escola nunca os ensinaram a falar nem escrever kimbundu. « Para se ser de um lugar e de uma infância, é preciso escrevê- la » , diz Ana Paula Tavares em resposta à carta de Ondjaki. Encontramos a resposta de Ondjaki, dentro da narrativa, em cada palavra, em cada metáfora, em cada silêncio, e dada directamente pelo narrador, quando promete à avó nunca se esquecer das « estórias do tempo de antigamente » , de se lembrar de todas as conversas « mesmo aquelas em que às vezes não conseguiam dizer nada » . Pela palavra, Ondjaki cumpre a missão de dar brilho às suas estrelas, pois, como diria o Espumadomar, « se não fossem as estrelas a brilhar, o céu não ia se mexer nem nada, ia ser um lugar sem graça nenhuma de olharmos para ele. » .