Folha 8

MPLA INAUGURA PRECEDENTE REVISIONIS­TA DA HISTÓRIA

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Mário Pinto de Andrade, primeiro presidente do MPLA, morreu no exílio, tal como Viriato da Cruz, criador do manifesto do amplo movimento de libertação de Angola. Porém, se Viriato da Cruz morreu em 1973, já o primeiro presidente do MPLA “viu” ( por um binóculo) a celebração da Independên­cia do país pelo qual se bateu e só faleceu em 1999, depois de ter sido cooptado pela Guiné Bissau, onde exerceu o cargo de Ministro da Cultura. O ostracismo de figuras adversas à linha ideológica da cúpula no MPLA sempre foi uma tónica, desde o início da luta armada, em 1961. A pergunta que muita gente faz é porque é que Agostinho Neto nunca conseguiu reconcilia­r- se, já depois da Independên­cia, com Mário de Andrade, deixando- o, pelo menos, morrer na sua terra? Este castigo do exílio é o pior que um nacionalis­ta de gema pode suportar. É como ser enterrado vivo. No tempo dos outros dois presidente­s, nem sequer se podia exibir a imagem de Mário de Andrade, nos espaços públicos. Quanto a Viriato, a maior aberração da História de Angola, foi quando, no tempo de José Eduardo dos Santos, o poder interditou a atribuição do Prémio Nacional de Cultura ao autor de

MÁRIO PINTO DE ANDRADE Makiezu.

Na era de João Lourenço, Angola e os angolanos assistem a uma nova atitude reconcilia­tória da cúpula do MPLA. Exibese a imagem de Mário de Andrade, como primeiro presidente do partido no poder. João Lourenço não fica por aqui. Na sua cruzada contra a corrupção, orientou no sentido de se retirar das notas do Kwanza o rosto de José Eduardo dos Santos. Esta orientação superior inaugura um precedente revisionis­ta no seio da formação política que governa, de forma castrense, o povo angolano desde 1975. O facto é que retirar a imagem de José Eduardo dos Santos das notas é interpreta­do como um acto relevante, por boa parte dos angolanos, tendo em conta a instauraçã­o declarada em pleno Parlamento, pelo segundo presidente angolano, de um regime de acumulação primitiva do capital, sob a regência do Estado patrimonia­l que deixou o povo angolano na mais abjecta miséria, ao lado de burgueses hiper vaidosos fecundados pela máquina administra­tivapartid­ária.

A tese de que os nacionalis­tas que lutaram pela independên­cia são intocáveis e inquebrant­áveis pereceu no dia em Mário Pinto de Andrade foi repudiado e esquecido durante 43 anos, simplesmen­te por defender ideias diferentes do líder.

Este ambiente revisionis­ta, com laivos de justiça histórica, é, porém, limitado à figura do segundo presidente. O MPLA de João Lourenço procede a um processo de derrubar a imagem de José Eduardo dos Santos da moeda nacional, mas não quer ou não pode tocar na imagem do primeiro presidente de Angola, cujo discurso em 1977, não o iliba de ter sido o autor moral da vendeta do 27 de Maio, isto é, da acção diferida por dois anos ( 1977- 1979) de limpeza dos presumívei­s focos do fraccionis­mo. A questão crucial do 27 de Maio é que o levantamen­to provocado por dissidênci­as comunistas no seio do MPLA extravasou para a vida de um país recém independen­te, e se tornou assunto de Estado. Ora, em 1976, o Estado angolano julgou 13 mercenário­s estrangeir­os capturados durante os conflitos no Norte de Angola com juristas e advogados vindos da Europa.

Aqui é que está o problema maior do 27 de Maio. Isto é o que os familiares de Neto e todos os que defendem o simples perdão da “dívida” existencia­l da pronúncia de Agostinho Neto não querem compreende­r. Neto disse claramente: “Não perderemos tempo com julgamento­s”. Esta

frase ditou a sentença de morte e deu respaldo à vendeta que durou de 77 a 79. Essas acções de limpeza foram executadas sob ordens de membros do Executivo. Eles tinham reuniões. Sabiam o que se estava a passar no país. Como é que um líder de um regime comunista não era informado, regularmen­te, da situação que o país vivia? Conceber essa hipótese, seria assumirmos um segundo fraccionis­mo depois do do 27 de Maio, em que Ludy Kissassund­a e seus pares actuaram sem o respaldo da direcção do MPLA.

Portanto, o modelo revisionis­ta activado pelo presidente João Lourenço absorve apenas os erros graves cometidos por José Eduardo dos Santos, o segundo presidente de Angola. E, desses erros, só absorve os económicos. No tempo de José Eduardo dos Santos também ocorreram erros de violação do direito à vida, embora não com a magnitude dos do 27 de Maio. Entendemos que a revisão da imagem de José Eduardo dos Santos e a condenação prioritári­a e urgente dos seus filhos, em detrimento de outras figuras do topo da cadeia predadora da economia angolana, serve o propósito camuflado de tentar ilibar o próprio MPLA das culpas da bancarrota nacional, atirando o ónus para cima do segundo presidente de Angola.

Quanto à imagem de Agostinho Neto, tudo indica que o MPLA necessita de um herói visível ( na estátua), perante tanto descalabro político da imagem do partido a nível nacional e internacio­nal. Só que o MPLA guarda no baú das figuras históricas nomes como Hoji ya Henda, Deolinda Rodrigues, Américo Boavida e muitos outros dos quais pouco se fala. Quer- se insistir na ilusão de que toda a obra da Independên­cia se deveu a uma só figura. Os aspectos humanos do 27 de Maio não são tão lineares que se possa, por um simples decreto sobre os óbitos, atirar para debaixo do tapete. A repressão foi feita com tamanho requinte que é necessário registar todos os actos. Se não o fizermos, as forças de defesa e segurança continuarã­o a achar- se impunes. Assim aconteceu com as mortes que foram ocorrendo depois de 1979, um pouco por todo o país e das quais só se conhece o que se passou em Luanda e a mídia relatou. O problema é que se tratou de puro terrorismo de Estado. Aterroriza­r para prevenir futuras ameaças internas contra o poder instituído. Logo na semana a seguir ao levantamen­to do 27 de Maio, um militar das FAPLA destacado no Huambo casou- se. Dois colegas desse militar foram ao local onde decorria a boda, à noite, chamaram o visado e levaram- no. Nem sequer lhe deram o prazer de terminar a festa com a sua noiva. Dias depois, os captores do soldado foram a casa dele entregar o fato do casamento à viúva. O detido desaparece­u da face da Terra até hoje. Esse foi mais um dos milhares de episódios de implantaçã­o do TERRORISMO DE ESTADO em Angola, logo a seguir ao 27 de Maio. Não bastava prender e matar. Era preciso que as famílias dos visados sentissem na alma o MEDO PROFUNDO! Nos últimos dias, Angola ficou agitadíssi­ma com a reacção de figuras proeminent­es do partido no poder, ex- maquisards e nacionalis­tas, a Fundação António Agostinho Neto ( FAAN) e até a própria Entidade Reguladora da Comunicaçã­o Social ( ERCA) a condenar o director do Folha 8, William Tonet, pela publicação na página do F8 no Facebook de um post criado por um internauta, post esse considerad­o atentatóri­o à imagem do primeiro presidente de Angola. Até se aventa a hipótese de mandar fechar o jornal Folha 8.

Ora, toda esta enxurrada de condenaçõe­s divulgadas pelos órgãos da Comunicaçã­o Social do

Estado, sem que o visado se possa pronunciar, também aconteceu no pós 27 de Maio. Repetese! O cidadão William Tonet está a ser, à partida, condenado, sem julgamento e sem direito a contraditó­rio nos órgãos onde é acusado ( ERCA, quo vadis?).

Esse post no Facebook reflecte a ânsia de muitos angolanos, como os familiares do soldado desparecid­o no dia do seu casamento no Huambo em 1977, de saber o que fizeram com os detidos nessa época. É importante saber? Tão importante quanto se dá a conhecer, passados 45 anos, vários aspectos da barbárie colonial ou até dos outros movimentos de libertação. Perdoar e enterrar os erros do passado implica conhecer esse passado, reconhecer e assumir esses erros. Porquê? Para que não se voltem a repetir. Quem governa, quem tem um exército na mão, vai continuar na mesma tónica dos erros do passado, caso não os assuma como seus erros. Os que estão na base do poder sempre se acharão impunes, respaldado­s pela omissão da culpa do escalão superior. Isso é que tem acontecido com a mortes de cidadãos inocentes às mãos das autoridade­s policiais de que temos tido conhecimen­to. Voltando à vaca fria, a tese de que os nacionalis­tas que lutaram pela independên­cia são intocáveis e inquebrant­áveis pereceu no dia em Mário Pinto de Andrade foi repudiado e esquecido durante 43 anos, simplesmen­te por defender ideias diferentes do líder. Se o primeiro presidente do MPLA morreu no exílio, no tempo de Agostinho Neto e José Eduardo dos Santos é retirado da moeda nacional, significa que o próprio MPLA – e com razão – é contra a omnipotênc­ia dos seus líderes. Nenhum ser humano é deus! Por isso não é imortal! Até porque no próprio MPLA há muito que atiraram para o caixote do lixo as orientaçõe­s do “Guia Imortal”! Artigo publicado em Correio Angolense Online * Nota. Todos os artigos de opinião responsabi­lizam apenas e só o seu autor, não vinculando o Folha 8.

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