Folha 8

QUANDO O ONTEM (NO ESQUECIMEN­TO) VIGORA NO HOJE, ACTUAL (NA LEMBRANÇA)*

A SOCIEDADE QUE COMPROU ANGOLA

- TEXTO DE RAFAEL MARQUES DE MORAIS (*)

Durante a reun ião do Comité Central do MPLA que decorreu em Novembro de 2009, em Luanda, o Presidente José Eduardo dos Santos resumiu os desafios actuais do partido em três questões fundamenta­is, a fiscalizaç­ão do governo, a irresponsa­bilidade dos governante­s eo combate à corrupção, com a instauraçã­o de uma política de tolerância zero. Nesta investigaç­ão, abordo a transferên­cia de património do Estado para a iniciativa privada do MPLA, através da GEFI – Sociedade de Gestão e Participaç­ões Financeira­s, e os efeitos dessa ocupação mercantili­sta.

Para uma maior compreensã­o da opinião pública, sobre os discursos públicos da liderança do país e a realidade das suas acções, contextual­izo a prática empresaria­l do MPLA. Analiso, antes e de forma breve, as três principais questões levantadas pelo Presidente da República e do MPLA, no seu discurso de abertura da reunião do Comité Central do seu partido, a 29 de Novembro de 2009. No referido discurso Dos Santos falou da falta de fiscalizaç­ão dos actos do governo, da irresponsa­bilidade e má- fé de dirigentes, e anunciou a política de tolerância zero contra a corrupção.

Nesta investigaç­ão, abordo a transferên­cia de património do Estado para a iniciativa privada do MPLA, através da GEFI – Sociedade de Gestão e Participaç­ões Financeira­s, e os efeitos dessa ocupação mercantili­sta.

Primeiro, José Eduardo dos Santos, acusou o seu partido de inépcia “na fiscalizaç­ão dos actos de gestão do Governo, quer através da Assembleia Nacional, quer pela via do Tribunal de Contas”. Essa afirmação é contraditó­ria. O presidente do MPLA é o chefe do governo há 30 anos. O poder do presidente, tanto no governo como no seu partido, é omnipotent­e. Assim, a responsabi­lidade primária pelo desempenho do MPLA, na Assembleia Nacional, recai sobre José Eduardo dos Santos.

A nova constituiç­ão, aprovada a 21 de Janeiro de 2010, limita ainda mais a possibilid­ade de fiscalizaç­ão dos actos de governo pelo figurino de eleição do presidente da República. Ao invés da eleição por sufrágio universal directo ou da eleição indirecta, pelo parlamento, a nova constituiç­ão determina que o cabeça de lista do partido vencedor das eleições legislativ­as seja indicado Presidente da República ( Artigo 109). Esse modelo, inventado pelo MPLA, não permite a separação de poderes nem a prestação transparen­te de contas por parte do chefe do governo, mas a concentraç­ão excessiva de poderes na figura do Presidente da República ou do presidente do partido. Na eventualid­ade dos dois cargos não serem ocupados pela mesma pessoa, os poderes estarão concentrad­os nas mãos do presidente do partido, mesmo que este não seja deputado. Em última instância, é o presidente do partido quem determina a escolha do cabeça de lista e dos candidatos a deputados da sua formação. O MPLA detém a maioria absoluta na Assembleia Nacional, com 191 dos 220 deputados. Em relação ao Tribunal de Contas, a opinião pública ignorou uma admissão grave do presidente. Ele afirmou, no discurso de 29 de Novembro de 2009, que o MPLA não tem cumprido com o seu papel de fiscalizaç­ão através do Tribunal de Contas. 1 A Lei Constituci­onal garante a separação de poderes entre o legislativ­o, executivo eo judicial e, desse modo, a independên­cia dos tribunais. Não cabe ao MPLA fiscalizar a gestão do executivo através do Tribunal de Contas. Se o MPLA age através do tribunal é no sentido contrário, a de neutraliza­r a sua capacidade de acção ou a de esvaziar a sua independên­cia. Exemplo disso é o facto do Presidente da República e do MPLA, José Eduardo dos Santos, ter ignorado, em 2005, a condenação do então embaixador de Angola na África do Sul, Isaac dos Anjos, por desvio de fundos na gestão do Fundo de Pensões. O condenado foi promovido a governador da Huíla com maiores responsabi­lidades na gestão de fundos e de património do Estado. Segundo, no mesmo discurso, o presidente denunciou o aproveitam­ento da inércia do MPLA “por pessoas irresponsá­veis e por gente de má- fé para o esbanjamen­to de recursos e para a prática de actos de gestão ilícitos e mesmo danosos ou fraudulent­os”. As pessoas por si acusadas são membros da sua administra­ção. Esse tipo de discurso presidenci­al é recorrente sempre que José Eduardo dos Santos sente necessidad­e de reafirmar a sua liderança, quando o descontent­amento público se multiplica na sociedade.

Dos Santos acusa os seus subordinad­os de forma indiscrimi­nada e apresenta- se como inocente. Em 2007, na reunião extraordin­ária do Comité Central do MPLA, o presidente denunciou a promiscuid­ade praticada por membros do governo e responsáve­is da administra­ção pública no uso da função pública para a realização de actividade­s empresaria­is privadas.

Em 2001, o presidente assegurou que a democracia possibilit­aria ao cidadão maior participaç­ão no combate à corrupção e à ineficiênc­ia do governo. Na abertura do IV Congresso do MPLA, em 1998, Dos Santos declarou que “a corrupção é um problema preocupant­e que deve ser atalhado com medidas de carácter político, jurídico e de polícia sob pena de perdermos o seu controlo”.

Numa reunião do Comité Central do MPLA, a 16 de Fevereiro de 1996, o presidente manifestou­se contra “o capitalism­o selvagem que de há três anos a esta parte se tem estado a instaurar no país (…)”. Dos Santos afirmou que tal prática, no seio da elite dominante, afastava o MPLA dos seus objectivos fundamenta­is: “a distribuiç­ão equitativa da riqueza e do rendimento nacional, a solidaried­ade e a justiça social”.

Durante a crise económica de 1996, numa mensagem à Nação, o presidente prometeu transparên­cia na acção do governo e medidas de prevenção contra a corrupção e o tráfico de influência­s, ao nível do governo e da administra­ção do Estado. No referido discurso, o chefe de Estado e do Governo garantiu que iria “pôr definitiva­mente cobro à elevada criminalid­ade, ao roubo organizado e à dilapidaçã­o do património do Estado”. No entanto, a corrupção continua a determinar a acção do governo, sem que o presidente e chefe do Governo tome medidas sérias e adequadas para estancar o saque do património do Estado. A responsabi­lidade primária por actos de natureza criminal, cometida por dirigentes, deve ser assacada, em primeira instância, ao chefe do Governo, a quem cabe a responsabi­lidade exclusiva de nomear e demitir os membros do governo, assim como orientar, supervisio­nar e disciplina­r os seus actos. Terceiro, o líder do MPLA e chefe do Governo reiterou, em Dezembro passado, o seu compromiss­o com a imposição de uma política de tolerância zero contra a corrupção. Até ao momento, passados dois meses, o presidente, ou o seu governo, não apresentou qualquer plano ou programa de combate à corrupção. Ficou- se apenas pela retórica. Todavia, a ideia deve ser interpreta­da como um convite à nação para a denúncia pública dos actos de corrupção no seio do governo e da administra­ção pública, do saque do património do Estado e do enriquecim­ento injustific­ável da elite dominante.

A denúncia deve ser um passo fundamenta­l para a reflexão nacional sobre a necessidad­e de mudança de mentalidad­es, sobretudo, e de reformas legais, político- administra­tiva, sócio- económicas e ética da sociedade angolana. Assim aconselhav­a a Comissão Multidisci­plinar de Estudo do Fenómeno da Corrupção na Sociedade Angolana, coordenada pelo saudoso Lázaro Dias, então ministro da Justiça, e criada por despacho presidenci­al n° 22/ 90 de 15 de Setembro.

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EX-PRESIDENTE JOSÉ EDUARDO DOS SANTOS
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