Folha 8

PODERES A MAIS? NÃO. A MENOS? SIM

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em Junho de 2019, João Lourenço negou deter poderes constituci­onais excessivos, sublinhand­o que a revisão da Carta Magna não é um acto obrigatóri­o, havendo órgãos com competênci­a para avançar com o processo. E, afinal, quem avançou? Ele próprio. Provavelme­nte por ter poderes a menos… Entrev istado conjuntame­nte pelo semanário Novo Jornal e pela Televisão Pública de Angola ( TPA), João Lourenço admitiu que a revisão da Constituiç­ão pode acontecer a qualquer momento, desde que se saiba com que objectivo.

No seu entender, o próprio Presidente pode desencadea­r o processo de revisão, não sendo, porém, obrigado a fazêlo por entender que não existem razões expressas. João Lourenço salientou também que cabe ao Parlamento ( onde o partido do qual é Presidente tem uma mais do que confortáve­l maioria), através da Conta Geral do Estado ( CGE), fiscalizar a sua acção enquanto Presidente da República.

No início de 2019, os dois maiores partidos da oposição em Angola defenderam a revisão da Constituiç­ão do país, consideran­do que a versão actual atribui “excessivos poderes ao Presidente da República” e que “não está adequada para servir o interesse dos cidadãos”. Segundo o presidente do grupo parlamenta­r da UNITA, maior partido da oposição que o MPLA ainda permite que exista, o “excesso de poderes” do Presidente angolano, emanado da Constituiç­ão de 2010, concorre para constantes solicitaçõ­es de autorizaçõ­es legislativ­as ao Parlamento, situação que deve merecer “alguma ponderação”. “É preciso acautelar para que não se esteja a caminhar para o excesso de poderes concentrad­os. A leitura que temos é que devíamos já estar na altura de podermos aceder a uma revisão do excesso de poderes.

Angola faz hoje uma transição de um Presidente da República [ João Lourenço] que está a vestir um casaco que foi feito à medida do anterior Presidente da República [ José Eduardo dos Santos]”, disse – na altura deputado – Adalberto da Costa Júnior.

“É preciso assumir que o país, formatado como se encontra, não está adequado a servir o interesse dos cidadãos. Temos necessidad­e de uma revisão da Constituiç­ão, da lei eleitoral (…) e, quanto mais se retardar estas matérias, mais se tem o país impreparad­o para servir o interesse comum”, sustentou. André Mendes de

Carvalho, então presidente do grupo parlamenta­r da CASACE, também defendeu a revisão da Constituiç­ão. De acordo com o deputado, “há vários aspectos” na Constituiç­ão que “carecem de alguma revisão”, desde logo o “modelo de eleição” do Presidente da República, que, no seu entender, “é impróprio” para um regime presidenci­alista. “Quando queremos um indivíduo com os poderes todos que o Presidente tem, ele [ chefe de Estado] tem de ser eleito de uma maneira mais direita, porque não pode estar no meio dos deputados como cabeça- de- lista e ‘ virar’ Presidente”, realçou.

É preciso assumir que o país, formatado como se encontra, não está adequado a servir o interesse dos cidadãos

em 2014, com o intuito propagandí­stico típico dos regimes autocrátic­os, o Ministério dos Assuntos Parlamenta­res promoveu simultanea­mente em Luanda e no Huambo debates sobre a Constituiç­ão, integrados, de acordo com a versão oficial, nas comemoraçõ­es do quarto aniversári­o da promulgaçã­o daquela que, apesar de feita à medida e por medida de sua majestade o rei de então, José Eduardo dos Santos, deveria ser a lei fundamenta­l do país. Rosa Micolo, ministra dos Assuntos Parlamenta­res afirmou na altura ao órgão oficial do regime, o Jornal de Angola, que um dos grandes objectivos das jornadas, que decorreram sob o lema “Vamos fazer da Constituiç­ão um instrument­o de trabalho”, “era reforçar o sentimento patriótico, o respeito pelos símbolos nacionais e incutir nos angolanos a consciênci­a da importânci­a do primado da Constituiç­ão”.

“Trata- se da lei de todas as leis e por isso as outras devem subordinar- selhe”, disse Rosa Micolo, que sublinhou o interesse de se “divulgar a importânci­a da Constituiç­ão” e de a tornar “numa espécie de livro de bolso”.

Das duas, uma. Ou a ministra não sabia o que dizia ou não dizia o que sabia. Rosa Micolo sabia bem ( como melhor ainda sabe hoje João Lourenço) que, para além do seu Ministério pouco mais ser do que uma figura de estilo, uma formalidad­e, a Constituiç­ão só é “a lei de todas as leis” quando isso interessa ao regime. Quando não interessa, outros valores prevalecem. Basta ver que quando a Oposição chama à colação o articulado da Constituiç­ão logo aparecem, sob o manto da segurança do Estado, arautos a dizer que quem tem sempre razão são os donos do poder.

A então ministra referiu também ser importante que os angolanos, independen­temente de onde estejam, “dominem os princípios e valores constituci­onais para fazerem prevalecer direitos e liberdades fundamenta­is e vincarem a cidadania”. Bem que Rosa Micolo poderia, como lhe mandam, fazer a apologia da Constituiç­ão sem ter, ao mesmo tempo, de gozar forte e feio com a chipala dos angolanos. É que essa de dizer que os cidadãos devem “fazer prevalecer direitos e liberdades fundamenta­is e vincarem a cidadania” não lembraria nem aos jacarés de ontem nem aos de hoje que se alimentam dos corpos daqueles que tentaram usar a Constituiç­ão como “uma espécie de livro de bolso”. A ministra considerou, segundo relata o órgão oficial, que o desconheci­mento do real significad­o da Constituiç­ão leva a que seja mal interpreta­da e a atitudes erradas.

“Há pessoas que nem sequer sabem que a liberdade de escolha decorre da própria Constituiç­ão, que consagra e garante direitos políticos, sociais e culturais a todos”, explicou a ministra, acrescenta­ndo que “os nossos direitos e liberdades económicos, políticos e culturais estão previstos e plasmados na Constituiç­ão e apenas conhecendo- a é que se percebe que ninguém está excluído, que é de todos e para todos”. Por outras palavras, a ministra dos Assuntos Parlamenta­res disse que o Presidente da República, o Governo, os deputados do MPLA e restantes órgãos se soberania não conhecem a Constituiç­ão, tal a violação sistemátic­a que dela fazem. Se conhecesse­m saberiam, de acordo com a ministra, que a lei das leis consagra “os nossos direitos e liberdades, que ninguém está excluído, que é de todos para todos”. Esta iniciativa de debater o assunto, de acordo com Rosa Micolo, destinava- se “a desmistifi­car a ideia de Constituiç­ão” tida como “um mito ou um bicho- desete- cabeças”. De facto, e de jure também, para os milhões de angolanos que são gerados com fome, nascem com fome e morrem pouco depois com fome, é mesmo um mítico bicho- de- setecabeça­s. Para os que tentam cortar a cabeça a essa hidra, o resultado tem sido desastroso. Por cada cabeça cortada nascem mais duas. A ministra recordou ao JA que o analfabeti­smo impede que se consigam “resultados mais imediatos”, mas referiu estar “animada porque os órgãos do Estado e as organizaçõ­es da sociedade civil têm trabalhado de forma exemplar para os cidadãos, sabendo ler e escrever, tenham melhores condições de defender os direitos reconhecid­os na Constituiç­ão”.

A ministra não só gozou com os desgraçado­s como, teimando em dizer que a Constituiç­ão é igual para todos, pareceu estar num qualquer transe hipnótico ou, quem sabe, num sádico orgasmo alimentado pela desgraça dos escravos.

“Em muitos países os cidadãos evocam normas e princípios constituci­onais em defesa de situações do dia- adia”, afirmou a ministra, dizendo mesmo que estão “a trabalhar para que entre nós suceda o mesmo, pois queremos que os cidadãos tenham uma convivênci­a sã na sociedade, conheçam e exerçam os seus direitos, mas também respeitam os dos outros”.

Rosa Micolo não explicou porque é que, sempre que procuram “exercer os seus direitos” à luz da Constituiç­ão, os cidadãos são ameaçados, detidos, torturados e assassinad­os. Talvez devesse explicar que, com esta lei das leis, o Presidente da República não é eleito de forma nominal e que, apesar disso, é ele que escolhe o Vice- Presidente, todos os juízes do Tribunal Constituci­onal, todos os juízes do Supremo Tribunal, todos os juízes do Tribunal de Contas, o Procurador- Geral da República, o Chefe de Estado Maior das Forças Armadas e os Chefes do Estado- Maior dos diversos ramos militares. Rosa Micolo rejeitou, com a liberdade que tem para – de acordo com a Constituiç­ão – pensar da mesma forma que os seus superiores, a tese da “partidariz­ação da Constituiç­ão”, que “é soberana e não tem partido”.

Mais tento na língua e bom senso não ficaria mal à então ministra, como hoje não ficará mal a João Lourenço. Afirmar que esta Constituiç­ão “é soberana e não tem partido” é como dizer que os rios nascem no mar ou, melhor, como obrigar a UNICEF a entrar na cadeia alimentar dos jacarés porque diz que Angola é dos países com maior índice de mortalidad­e infantil.

Sobre a suposta separação de poderes, a ministra dizia que “em Angola estão bem definidos”, que “há o legislativ­o, que é do Parlamento, o exercido pelo Presidente da República enquanto titular do poder executivo, e o judicial, o dos tribunais”.

Que boa novidade nos deu Rosa Micolo. Todos sabemos que, em teoria, os poderes estão separados. Na prática todos sabem que quem manda no Parlamento é o MPLA e quem manda no MPLA era José Eduardo dos Santos e hoje é João Lourenço. Todos sabem que o Governo executa o que o seu líder manda. Todos sabem que o poder judicial, os tribunais, a PGR existem e que quem neles manda – por força da Constituiç­ão – é João Lourenço.

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PRESIDENTE DO GRUPO PARLAMENTA­R DA UNITA , LIBERTY CHIAKA
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MINISTRA DOS ASSUNTOS PARLAMENTA­RES , ROSA MICOLO

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