Folha 8

Carta aberta ao Presidente da República de Angola

-

Opropósito da visita do VicePresid­ente de Angola a Cabinda, José Marcos Mavungo, activista dos Direitos Humanos, dirigiu ao Presidente da República, João Lourenço, com conhecimen­to às Nações Unidas, União Africana, Governo português e partidos políticos da oposição angolana, uma carta aberta que Folha 8 reproduz na íntegra: « Soube de um amigo que o Vice- Presidente de Angola, Sua Excelência Sr. Bornito de Sousa Baltazar Diogo resolveu viajar para além de Luanda e encetar uma viagem à roda de Cabinda. Por esta razão, pensei em escrever- lhe sem cuidar da forma, pois esta carta não podia ser trabalhada, uma vez que foi improvisad­a sob a espora do momento por alguém que, para além do mais, é vítima do conflito ainda reinante em Cabinda.

Mais uma viagem de um alto dignitário do regime a Cabinda. Cada viagem tem uma história diferente. E a história desta viagem é celebrar os 19 anos de paz de Angola. Curiosamen­te, o acto central das comemoraçõ­es do Dia Nacional da Paz e Reconcilia­ção que se celebra em 4 de Abril tem lugar num território em disputa.

Como é de prever, esta viagem contra o tempo não se efectuará sem incidentes… e não faltarão obstáculos para superar a resistênci­a do povo de Cabinda nestes últimos 45 anos, desde os espíritos críticos, que clamam pela justiça e paz para Cabinda, àqueles que, no silêncio da alma, vão chorando nas suas orações pela impotência do regime, por que acreditam que a situação pode mudar. Assim, prevejo que, nestas celebraçõe­s de 4 de Abril de 2021, as ruas de Cabinda serão de novo povoadas de polícias e Sinfos, para a habitual coacção psicológic­a e onda repressiva contra todos quantos ousarem fazer reclamaçõe­s. Mas, convinha recordar que, para dar resposta à necessidad­e de justiça, e paz para Cabinda, o Governo de V/ Excelência já prometeu vezes sem conta a resolução pacífica do diferendo de Cabinda. Por exemplo, logo após independên­cia de Angola, a 16 de Fevereiro de 1976, Agostinho Neto assume o compromiss­o de solucionar o problema de Cabinda pela via do diálogo. A 28 de Fevereiro de 1976, Agostinho Neto e Mobutu Sese Seko reuniram- se em Brazaville, sob os auspícios de Marien Ngouabi. O primeiro, depois de coagir o segundo a renegar a FLEC e a FNLA e a reconhecer a angolanida­de de Cabinda, proclamou por sua vez a especifici­dade de Cabinda ( o particular­ismo de Cabinda) e prometeu solenement­e encontrar para esta uma fórmula de administra­ção. Mas nada foi feito até hoje.

Além de vamos conversar! – de Fevereiro de 1991, o presidente José Eduardo dos Santos considerou, em Fevereiro de 2002, que Cabinda seria também “uma questão a tratar no âmbito da reforma constituci­onal”. Assim será possível “saber o que é que os angolanos todos querem, qual a sua opinião sobre Cabinda. Trata- se de uma consulta popular dirigida a todos os angolanos”, afirmou o Presidente angolano. Acresce que o Presidente de Angola prometeu aos Cabindas, em Setembro de 1992, negociaçõe­s destinadas a determinar se Cabinda é ou não Angola.

Porém, as promessas de resolução do diferendo de Cabinda, boa governança e respeito pelos direitos humanos nunca passaram de promessas, porque V/ Excelência e seus predecesso­res têm andado sempre atrás de um prejuízo que vos responsabi­liza. Ainda hoje fazem essas doloridas promessas de joelhos, sobretudo em tempos de eleições. Mas, hoje, todos vêm a calcinha de Margareth, mesmo se alguns não têm a coragem de dizer que o rei vai nu. Hoje, as populações de Cabinda recebem com uma frieza macabra as habituais visitas de V/ Excelência, porque sabe que é o MPLA e o Governo de Vossa excelência que, nestes últimos 45 anos, têm sequestrad­o a terra deles, queimado as suas casas, roubado as suas riquezas, escravizad­o as suas mulheres e crianças, e cometido diversos outros crimes tão numerosos, que nem dá para detalhar nesta carta. Qualquer semelhança entre Vossa Excelência e os seus antecessor­es é pura coincidênc­ia. Há o poder absoluto e absolutist­a, acreditand­ose acima do bem e do mal; há o autoritari­smo estatal e a lógica das balas, as atitudes musculadas; há os instintos militarist­as, sustentado­s por soldados afeitos a serviço das ambições frenéticas e ilimitadas dos poderes político e militar; há uma enorme massa de procurador­es e juízes submetidos às ordens superiores da classe política dominante, mas a equipa governativ­a nada tem a ver. Tudo é o mesmo, para o mal- estar dos humildes do povo. E, tal como antes com predecesso­res de V/ Excelência, também agora continuam a suceder governador­es autocrátic­os em Cabinda, com os mesmos métodos repressivo­s e a mesma insensibil­idade ao sofrimento do povo: ordenar detenções e condenaçõe­s de activistas sociais por não aceitarem as regras do jogo que impõem; e mover difamações e perseguiçõ­es contra as vozes que reclamam o bem- estar de todos e defendem a justiça para os humildes do povo. Diante desta gratuidade, a governação de V/ Excelência em Cabinda fica assaz ambíguo: como interpreta­r atitudes de governante­s « que afirmam os autóctones de Cabinda serem cidadãos, e vão submetê- los à condição indigna de cidadania sem liberdade » ; « que incarnam uma espoliação sistemátic­a dos enormes recursos naturais de um território, e vão mostrarse insensívei­s diante das condições dos populares submetidos a uma pobreza abjecta » ; « que falam de paz, e apostam em belicismo cultural, pelo qual se esquecem do valor da vida e do diálogo construtiv­o » ? .

Que eu saiba estamos numa altura da época que poderia mudar alguma coisa no andamento da governança e no funcioname­nto normal das instituiçõ­es democrátic­as. Refirome ao famoso slogan: « Corrigir o que está mal e melhorar o que está bem » . Mas este slogan acabou de ser banalizado pelo facto de termos atravessad­o estes últimos quatro anos sem uma vontade séria de mudanças.

Durante estes últimos 45 anos, houve sempre indicador de qualquer defeito colado ao regime sobre Cabinda. Sabemos de onde vem o erro: a violência exercida pelo desastre da descoloniz­ação sobre os autóctones de Cabinda. Agora V/ Excelência continua à procura de solução fundada no argumento alicerçado na « pax romana » que só o responsabi­liza e faz com que, desde a acessão de Angola à independên­cia, não se consiga concretiza­r as oportunida­des de paz duradoira para Cabinda. É grave continuar a governar Cabinda como sempre foi nestes últimos 45 anos. O incremento da pobreza, repressão, inseguranç­a e contestaçã­o popular em Cabinda lembra que a Verdade e a Justiça são teimosas. A Questão de Cabinda tem o seu retrato, a sua estupenda fotografia. Assim sendo, todo o processo negocial sobre Cabinda só será autêntico se levar as partes até à raiz do mal, até ao seu coração; de contrário, será falso. É urgente, pois, que V/ Excelência adopte uma agenda de paz para Cabinda. A actual situação requer uma vontade política séria e determinad­a a conferir uma paz duradoira, fundada na justiça e dignidade dos povos. O MPLA e o Governo de Vossa Excelência não devem ignorar o facto de que houve um erro visual nos famosos acordos de Alvor sobre Cabinda, mas acima de tudo do conflito armado decorrente do descontent­amento dos autóctones que nunca foram consultado­s sobre o assunto. Isso, por si só, obrigaria a uma reflexão nacional e a uma reacção. Negar a existência da Questão de Cabinda foi sempre um erro. »

 ??  ?? VICE-PRESIDENTE DE ANGOLA, BORNITO DE SOUSA BALTAZAR DIOGO
VICE-PRESIDENTE DE ANGOLA, BORNITO DE SOUSA BALTAZAR DIOGO
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola