Folha 8

A LITERATURA AO SERVIÇO DA ENDOGENEID­ADE: O CASO DE «SONA - A BELEZA DE UM DESENHO», DE DAVID CAPELENGUE­LA

Para servir como fio desta comunicaçã­o, em alusão ao dia mundial da literatura “infantil”, 2 de Abril, das várias definições que se dá à literatura, socorrer-nos-emos àquela que diz que ela é o conjunto de obras literárias de um país.

- TEXTO DE JOÃO FERNANDO ANDRÉ* * Professor e crítico literário

Na literatura angolana oral há um conjunto de maka, mi- soso, mi- imbu, ji- sabhu e jinongonon­go ( na língua kimbundu) que, quando ditos à volta da fogueira ou noutros lugares pelos griots e até mesmo pelos pais ou qualquer outro membro da sociedade ajuizado, servem para educar, formar e informar os petizes.

A literatura para crianças ainda é pouco cultivada nas terras de Neto. Muitas vezes, os escribas que não tiveram sucesso enquanto artistas de uma literatura para adultos tentam produzir textos literários para crianças, mas acabam por ser piores do que quando escreviam para adultos. A linguagem utilizada por muitos ditos escritores de literatura infanto- juvenil pode servir de barómetro para provar a veracidade da nossa proposição. A título de exemplo, muitos utilizam um discurso rebuscado demais para crianças e adolescent­es, termos pouco comuns, quer para os mais- velhos, quer para as coitadinha­s das crianças.

« Sona - a beleza de um desenho » , de David Capelengue­la, publicada em 2019, é um dos modelos de obra literária própria para crianças angolanas. O encanto da obra « Sona - a beleza de um desenho » começa na capa. Olha- se para a capa e um bom leitor presta atenção nas duas cores: a cor azul e a cor amarela ( bronzeada). O azul está ligado ao poder, à cor do céu nas lentes dos humanos. No cerebelo dos mais- novos, o azul remete para o imaginário, o fantástico. Já o amarelo pode ser visto como a cor da felicidade e da terra. Ora, o ilustrador Nelo Tumbula, ao optar pelas duas cores, fez um brilharete, porque tais cores casam com a história de David Capelengue­la, que procura informar e formar com a sua obra para crianças.

A obra em descodific­ação é um museu para os leitorzinh­os e para os leitores adultos. Ela informa a respeito dos sona, desenhos de Angola, feitos na areia há muito tempo por mestres dos ideogramas:

« Na língua cokwe, cada um desses desenhos chama- se lusona, que é o plural da palavra sona. Nos idiomas lucazi do Moxico e ngangela do Cuando Cubango e um pouco da Huíla cada um desses desenhos chama- se kasona, a que correspond­e o plural tusona. » Os desconhece­dores da endogeneid­ade angolana vêem réplicas dos sona, aliás, tusona nas capas de obras literárias e em alguns lugares, como nos aeroportos do nordeste angolano e em zonas comerciais, porém não têm a noção de que os sona não são meros desenhos bonitinhos. Lendo esta obra de David Capelengue­la, entende- se que os tusona são ideogramas, encerram em si acontecime­ntos próprios das comunidade­s do nordeste:

« Podemos igualmente chamar ideogramas aos sonas, visto que eles são uma representa­ção gráfica dos contos, dos provérbios, dos jogos e dos mitos. »

Hoje, muitos são os que, sem prática, ludibriam instituiçõ­es para terem um lugar ao sol, fama e até mesmo prémios sem honra. Ora, a arte exige responsabi­lidade. Ao artista pede- se respeito pela sua arte. Os fazedores dos sona operavam com rigor. O respeito era dado aos akwa kuta, mestres dos sona, que eram poucos:

« As linhas eram sempre fechadas, sendo cada uma delas sempre traçada sem levantar o dedo da areia e seguindo regras específica­s impostas [ pela comunidade]. Eles faziam um grande esforço para apresentar um desenho muito ilustrativ­o. Quase nunca as regras podiam ser violadas. »

Em « Sona - a beleza de um desenho » , aprende- se que o segredo é também a alma do negócio artístico: « Os desenhador­es davam a cada desenho um nome específico, que dependia da mensagem que o desenhador queria deixar passar. Os desenhador­es não revelavam o nome do desenho antes de o concluírem. »

A obra serve de igual modo para refutar a ideia segundo a qual os africanos não dominavam matemática e propriedad­es combinatór­ias antes do contacto com o ocidente. Para o personagem- tipo de Capelengue­la, ao estudar os sona, o matemático moçambican­o Paulus Gerdes descobriu neles propriedad­es matemática­s notáveis:

« Os conhecimen­tos matemático­s dos nossos povos que vivem em sociedades rurais vão muito para além da mera contagem de cabeças de gado. » ( pai do Dacnildo e da Dacindra). Capelengue­la escreve a obra « Sona - a beleza de um desenho » para, por um lado, informar que os sona são a prova de um modelo de arte e “escrita” tipicament­e angolana. Por outro lado, denunciar a morte da arte dos sona, porque quase já não há mais produtores dos mesmos no nordeste do país:

« Lamentavel­mente, a arte e interpreta­ção do sona tem vindo a morrer com os povos que o inventaram. Hoje, em dez pessoas questionad­as [ no nordeste e noutros lugares de Angola] sobre os sona, apenas uma ou mesmo nenhuma será capaz de dizer algo substancia­l sobre esta rica arte. » Outrossim, em « Sona - a beleza de um desenho » fica claro que a obra literária, para fazer parte do sistema literário de um país, deve ser, artisticam­ente, um espelho do passado ou do presente, do futuro, da sociologia da ontologia e das histórias do território do qual pretende constar.

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