Ao ilustre Profº Adão de Almeida
Por Paula Vieira*
Aeuforia que se seguiu à notícia da demissão (forçada) da presidente do Tribunal de Contas diz bem quão equivocados andamos sobre o conceito de Estado Democrático de Direito. Ao invés das celebrações, o País deveria iniciar um profundo debate sobre a saúde de uma democracia em que o Presidente da República designa os presidentes dos Tribunais Superiores, podendo ignorar a vontade dos pares destes, o que aconteceu em todos os casos, presidente da Assembleia Nacional, governador do Banco Nacional, mandando às urtigas o parecer da Assembleia Nacional porque não é vinculativo, os presidentes dos Conselhos de Administração dos órgãos públicos de comunicação social, da Sonangol, o Chefe de Estado Maior General das Forças Armadas bem como os chefes dos seus ramos, os directores dos serviços secretos (militar, interno e externo) e até o administrador da Cidade Administrativa de Luanda. É uma absoluta aberração. Ao poder discricionário de designar quem ele muito bem entende, o Presidente da República pode, sempre que, por alguma razão, acordar mal disposto, somar a arbitrariedade de desfazer-se de qualquer entidade que tenha nomeado, mesmo que a Constituição da República não lho permita expressamente. É o que aconteceu com Rui Ferreira, então presidente do Tribunal Supremo, Manuel Aragão, a quem atribuíram um pedido de demissão, e, agora, sucede o mesmo com Exalgina Gamboa, escorraçada – é o termo – do Tribunal de Contas em condições humilhantes. Para ela e para o Estado Democrático de Direito. Vasculhando à Constituição da República de Angola na sua última versão não se encontra uma única alínea que confira ao Presidente da República de Angola poder para convidar presidentes dos Tribunais Superiores a demitirem-se por “falta de condições”.
Em quê é que se traduz essa falta de condições? Na presunção de que Exalgina Gamboa praticou actos de corrupção e de peculato, conforme foi fartamente denunciado? Se a “falta de condições” tem como premissa as reiteradas denúncias, o Presidente da República usurpou despudoradamente competências que a Constituição da República de Angola atribui exclusivamente à Procuradoria Geral da República.
Por outro lado, o instituto da presunção de inocência, de que devem beneficiar todos os cidadãos, não pode ser calcado pelo Presidente da República. Se – e isso é apenas uma mera hipótese académica – a presidente do Tribunal de Contas (num puro acto de heresia, estimulado por alguma substância entorpecente qualquer) o convidasse a demitir-se por abusar da adjudicação directa, prática que pode encobertar corrupção, uma vez que as empresas beneficiárias são invariavelmente as mesmas, o Presidente da República aceitaria? Ainda no campo das hipóteses, teriam os órgãos de comunicação social públicos noticiado a nota do Tribunal de Contas em como a juíza presidente do Tribunal de Contas convidou o Presidente da República a demitir-se por danos reputacionais inerentes a muitos dos seus actos?
Não sendo possível tal heresia ter lugar em canto nenhum do do mundo, é possível qualificar o regime vigente em Angola de um só poder, aliás de uma só pessoa, que manda e todos cumprem, como democracia? Estaremos em presença de liberdade de imprensa num País em que os órgãos de comunicação social públicos só noticiam as crises institucionais quando autorizados a fazêlo?
Num País em que o Parlamento inicia as suas actividades sem completar a composição da sua mesa por orientação ou falta dela, podemos qualificar este órgão como soberano? Num País em que a Polícia Nacional, ou seus agentes, é utilizada pelos membros do partido e ministros para demolir casas de cidadãos sem qualquer autorização da administração pública ou judicial, é uma instituição apartidária ou republicana?
E se não existe separação e respeito dos poderes, liberdade de imprensa (nos principais órgãos de comunicação do país), a Polícia é utilizada a bel prazer de que tem um cargo num CAP do partido, esse sistema é ainda assim democrático, ilustres professores de Adão de Almeida e todos outros que rodeiam o Presidente da República?
*Correio Angolense
ACamarafu, empresa detida maioritariamente pelo general Hélder Vieira Dias “Kopelipa”, acaba de perder o contrato de abastecimento, em regime de exclusividade, de bens alimentares e outros ao Ministério de Defesa Nacional e Veteranos da Pátria e às Forças Armadas Angolanas. O contrato da Camarafu com o MINDENVP e FAA contemplava o fornecimento de mais de 500 itens de bens alimentares e outros, nomeadamente, papel higiénico, pastas dentífricas, etc.
Assinado quando exercia o cargo de ministro de Estado e Chefe da Casa de Segurança do Presidente José Eduardo dos Santos, o contrato, que não passou pelo crivo do concurso público, rendia à Camarafu uma facturação anual na ordem de 300 milhões de dólares.
Segundo soube o Correio Angolense, a Camarafu não será indemnizada pela rescisão unilateral do contrato.
A “rasteira” que a Camafaru acaba de sofrer coincide com o momento em que o general Kopelipa, seu principal accionista, já foi constituído arguido num processo em que a Procuradoria Geral da República o acusa de uma imensidão de crimes, nomeadamente, peculato, fraude, associação criminosa, falsificação de documentos e tráfico de influência. Os putativos crimes teriam sido praticados quando o general Kopelipa acumulava a chefia da Casa de Segurança de José Eduardo dos Santos com a de director do poderoso Gabinete de Reconstrução Nacional, um apêndice da Presidência da República que geria os mais de 20 biliões de dólares que a China emprestou ao nosso país para se reerguer dos escombros da guerra. O Ministério da Defesa e as FAA prescindiram os serviços da Camarafu a favor do Grupo Carrinho.
A Carrinho chama a si a logística alimentar do Ministério da Defesa e das FAA também sem passar por qualquer concurso. O grupo benguelense junta ao contrato com o MINDENVP e FAA a outro, que lhe concede, também em regime de exclusividade, o fornecimento de bens alimentares e outros ao Ministério do Interior e órgãos dependentes.
Esse contrato foi negociado pelo anterior ministro do Interior, Ângelo da Veiga, a quem são geralmente atribuídos interesses no Grupo Carrinho. O novo contrato com o MINDENVP e FAA representa uma sobrecarga a que o Grupo Carrinho não tem correspondido à altura.
Fontes conhecedoras do assunto garantiram ao Correio Angolense que, desde que assumiu o compromisso com o Ministério da Defesa e com as FAA, o Grupo Carrinho não tem conseguido satisfazer, sequer, 30% das necessidades daquelas duas instituições. “Falta-lhe claramente capacidade para atender a tanta demanda”, referiu a fonte do CA. Além dos fornecimentos alimentares e outros ao Ministério do Interior e órgãos dependentes e, agora, ao Ministério da Defesa e às Forças Armadas Angolanas, o Grupo Carrinho gere a Reserva Estratégica Alimentar, num contrato com o Governo que lhe rende 800 milhões anuais.
A Reserva Estratégica Alimentar é um expediente a que o Governo de João Lourençolançou mão a partir de 2021 com o propósito de regular o mercado e influenciar a baixa dos preços da cesta básica.
Nas semanas que antecederam as eleições de Agosto passado, o Governo festejou ruidosamente a baixa de preços de produtos como arroz, coxas de frango, óleo e massa alimentares e pouco mais. Realizadas as eleições, de que o MPLA se auto-proclamou vencedor, os preços da cesta básica alimentar voltaram à “normalidade”, ou seja, continuaram muito acima dos rendimentos do cidadão comum. Desde então, os cidadãos não mais ouviram falar da REA. Pouco depois de ganhar a gestão da REA, o semanário Expansão disse ter tomado contacto com facturas a partir das quais detectou que a Carrinho importava “produtos fornecidos pela Many AG, uma empresa com sede na Suíça e sucursal em Portugal e pertencente ao mesmo grupo e os revendia a Angola a preços quatro a cinco vezes mais caros que nos mercados. Na prática, receia-se que o Estado colocou duas raposas a gerir o galinheiro que é a Reserva Estratégica Alimentar”. Desde que chegou ao poder, em 2017, o Presidente João Lourenço tirou o Grupo Carrinho do anonimato e transformou-o num dos maiores beneficiários de negócios com o Estado.
Em 2021, o Grupo Carrinho
comprou o Banco do Comércio e Indústria, o segundo banco público, pela bagatela de 28 milhões de dólares. Numa entrevista colectiva, João Lourenço fez uma tenaz defesa do grupo empresarial benguelense.
“Que eu saiba, o Estado não pôs nenhum tostão neste projecto do grupo Leonor Carrinho”, e revelando conhecimentos compatíveis com os de um contabilista do grupo, o Presidente da República acrescentou que esse conglomerado de empresas prosperou “com meios próprios dos negócios que foram tendo ao longo dos anos e recorreram à banca comercial”.
Sobre o facto de o Grupo Carrinho ter sido o único usufrutuário em 200 milhões de euros de uma linha de crédito alemã de 1.000 milhões, cuja concessão impunha como condição incontornável a apresentação de garantias soberanas, o Presidente da República sustentou que a empresa criada no Lobito seria a única que “conseguiu provar que está habilitada a beneficiar desta linha de crédito. Quem beneficiar desta linha, o crédito fica coberto de uma garantia soberana que o Estado dá”.
O Estado, segundo o Presidente da República, “não pôs nenhum tostão neste projecto do grupo Leonor Carrinho”, mas o Grupo Carrinho concorreu ao crédito alemão com uma garantia soberana do Estado angolano.
Dada a sua profunda ligação “sentimental” ao grupo benguelense, presume-se que a orientação para que o Ministério da Defesa e as FAA rompessem, sem aviso prévio, com a Camarafu, em benefício do Grupo Carrinho, tenha partido directamente do próprio Titular do Poder Executivo que, simultaneamente, Comandante-em-chefe
das Forças Armadas Angolanas.
Os privilégios com que o Presidente João Lourenço cobre o Grupo Carrinho e a Omatapalo contrariam a cantilena anti-monopólio com a qual justificou a retirada da primazia que Isabel dos Santos tinha no mercado cimenteiro.
Na sua primeira Mensagem à Nação, em Outubro de 2017, feita na Assembleia Nacional, João Lourenço disse que a situação privilegiada em que a primogénita de José Eduardo dos Santos se encontrava na indústria do cimento provocava concorrência desleal.