Adriano Mixinge e a borboleta com a idade da história de Angola
“A Flor de Mazozo ou a Festa dos Pássaros” é um livro que nos prende desde o começo. Logo na abertura temos a imagem de uma mulher a assimilar as polifonias do autoprazer. A obra não é surpreendente apenas pelo voluptuoso começo, mas também pela sofisticação e sensibilidade do texto de Adriano Mixinge, capaz de descrever com naturalidade as percepções e os sentimentos mais complexos de uma mulher que se dobra aos seus desejos.
Aobra literária que vislumbramos enche-nos de satisfação por ser das poucas, na literatura angolana, que se centraliza na pessoa da mulher, trazendo a presença de personagens femininos com opiniões contrastantes e cheias de matizes, e a exposição de dialécticas contraditórias, o que representa uma tocha acesa sobre a valorização do pensamento feminino na literatura angolana. Um escritor é mumificado por factos e remorsos menosprezados, é atraído pelo desejo de explorar o calar do corpo, e ascender por meio de experiências que criam o mistério que se efectua na voz emancipadora da matéria. Ele arquitecta a respiração do mundo, refaz catástrofes reais por meio de catástrofes fictícias e, articula perseguições ao tempo, através do verbo. Mas, com que olhos um homem que já contou mais de cinquenta sóis vê a face do mundo?
Adriano Mixinge, com sua já consagrada visão de mundo, traz-nos em “A Flor de Mazozo, ou a Festa dos Pássaros” um olhar atento, que deambula por um passado ressentido e com indefinidos sentimentos de culpa. Com sua mais recente proposta literária, o escritor que se tem mostrado observador e crítico, vagueia por um universo alheio, mesclando-se com a personagem de uma mulher que mais parece uma borboleta com a idade da história de Angola.
Trata-se de um conjunto de dez relatos que, durante a sua sequência, ora nos mergulham numa obscuridade luminosa, ora nos envolvem numa luminosidade insuportável para os olhos. Dos dez relatos, apenas um, “Mar Seco de Areia Vermelha” traz uma temática diferente da dos restantes. Sendo assim, a maioria dos textos poderiam ser considerados continuidade um dos outros, pois, do começo ao fim acompanhamos o ápice e a decadência de Flor de Mazozo, uma mulher simultaneamente diurna e nocturna, tão enigmática e caótica nas palavras que nos conta sua história com uma intensidade que se diria amordaçada.
“A Flor de Mazozo, Ou a Festa dos Pássaros” relata-nos nitidamente a solidão de uma Mulher que sentiu na pele as pancadas da vida, uma solidão que se furta ao consolo de qualquer voz humana, ou de qualquer mão estendida. A Flor vive a guerra e a paz, possui os mais insignificantes caracteres de sobrevivente de guerra, amparando-se na morte que insiste em antecipar. Ao lermos os relatos aqui propostos, surge imediatamente a pergunta se personagens desse género poderiam ser outra coisa além de projecções autobiográficas, na medida em que entre autor e personagem se estabelecem relações de reciprocidade frequentemente labirínticas e conflituosas. Tratam-se de confissões, no sentido agostiniano ou rousseauniano, mas que se afastam muito da exibição peculiar à primeira pessoa.
Algumas mulheres são desertas e, outras florescem em vida. Todas elas acontecem em alto grau, desviam-se de instantes de paralisia e constroem ininterruptamente novas geografias, jogando dados contra as energias que afectam o movimento inventivo do mundo. A Flor é uma personagem viva, mergulha no desejo coexistencial e contempla a multiplicidade da natureza sem assimilar dialécticas. É uma mulher do passado que vive no futuro. Vive submersa numa profunda neurose, sem clamar por qualquer tipo de piedade. Existem várias formas de se contar uma história, inclusive não a contando. Com os seus relatos, Mixinge mostra-nos um tópico erótico ou, simplesmente, a visão substantiva da relação íntima e ideológica da mulher com os seus desejos aprisionados, trazendo à tona todo o potencial sexual criativo, isto é, o poder de criar uma nova maneira de nos relacionarmos connosco. Quando se é mulher, o sexo deve ser evidenciado de forma hostil senão desaparece-se devido ao facto de que nas sociedades patriarcais a mulher existe, para respeitar a existência do homem. O reflexo da “Flor de Mazozo” dilui-se na mulher que Adriano Mixinge nos propõe desde o primeiro relato, uma mulher feita de caos e sexo, que expressa seus questionamentos pelo auto-prazer. Como a vida, também um livro, pode ferir-nos intoleravelmente, é algo que acontece a medida em que nos apegamos nas vozes, ou no desfile dos dramas dos personagens. Adriano Mixinge, neste assombroso livro consegue dar-nos tantos venenos e sensações que fazem crer que é possível morrer discretamente.
O final do livro, traz um plot twist que realmente admirável, e conseguir isso em um livro com menos de 150 páginas é uma conquista notável para o autor. Sugerimos um livro que vale o seu valor, leiam e façam uma boa viagem aos dias de uma vida cataclísmica.