Mas como alguém se encontra?
“Monólogo com mala”, de Guerassim Dichliev
A inal o espaço cresce em nós. A peça nos ensina que nada existe para além de nós. Que tudo à volta é uma grande extensão do nosso íntimo. A imagem de um palhaço a lito a reanimar o possível coração da sua mala é a primeira que abre as múltiplas interpretações do imaginário que a peça posteriormente traz mais amadurecidas.
Além de uma viagem (mala), é certamente uma parábola sobre cidadania, reencontro consigo e socialização. Em “Monólogo com mala”, o espaço se confunde com a essência. A personagem e o espaço são as suas próprias tramas. Juntas, coração e Europa não têm diferença de espaço, e ambos são alcançados pelo mesmo caminho. Todo o continente cabe no coração de um cidadão que se entrega em restituição a este espaço. É assim que rodar o continente acaba sendo uma profunda caminhada sobre o seu coração.
Em palco está apenas um palhaço e a sua mala. Afectado nos gestos, tem na faceta um pouco de Arlequim, que por várias vezes diverte o público com as diversas personagens que sugere: mãe, pai, um violinista, um pianista, um maestro, uma porta, um comboio…, todos ajustados, mas sem denotar esforço excessivo ou descontracção demasiada.
Mas como alguém se encontra? A consciência do espaço levou o cidadão à consciência do lugar do homem no mundo. Tirou-o da distracção de si. Fê-lo perceber a participação em sím- bolos de elevadas cargas históricas e emocionais, como a Torre Eiffel ou a queda do muro de Berlim.
“Só agora, ao crescer, me dou conta como sou europeu, e como sou pertença de todas as partes da Europa. É nas diferenças deste continente que me encontro. Antes não sentia isso, dou conta enquanto adulto”, diz Guérassim Dichliev.
“Alguma das cenas, como é o caso da viagem de comboio, aconteceram mesmo. Um dia viajei de comboio por alguns países da Europa”, sustenta o actor, referindo-se à sua memorável viagem para dentro do continente, e que por várias vezes repete em palco, mas já para dentro de si.
A mala
Nos 45 minutos da peça, a mala não é só uma mala; sofre de um animismo progressivo: é um objecto passível de cargas sentimentais, é outro palhaço em palco; é outra entidade que reclama do seu espaço e utilização, é outro actor sujeito a várias transformações em cena neste monólogo bilingue.
É uma dupla ora afectuosa, ora triste, ora alegre, mas sempre subtil nos gestos. Guerassim faz-se bem acompanhado pela mala nas abaladas mudanças de estado de espírito e transformações, muitas vezes arrojadas e bruscas. São surpresas, sussurros, sorrisos; todos con luindo quase ao mesmo tempo, como a cena dramática de um gesto de tentativa de suicídio – feita apenas através de gestos de dedos – se transformar em um telefonema de saudade à sua mãe.
Guerassim Dichliev
Apresentada na noite de 15 de Novembro no Elinga Teatro, já foi rodada em mais de oitenta países em todo o mundo, e foi trazida em Angola pela Aliança Francesa de Luanda.
Búlgaro, Guérassim Dichliev (Guéro) foi aluno da escola de mímica de Paris de Marcel Marceau (Ecole Internationale de mimodrame de Paris).
Em 1996, logo que formado, Guérassim Dichliev torna-se assessor e professor ao lado de Marcel Marceau, com quem trabalha até 2005, ano em que a escola é encerrada. Muito apreciado pelo mestre, associa o seu talento à companhia dele e acompanhao em digressões internacionais.
Actuou junto de vários artistas: Mime Marceau, Marie Trintignant, Monica Bellucci, Michaël Youn, Gérard Depardieu, Madona Bouglione…
Depois de ter saído da Escola de Marceau, Guérassim Dichliev colaborou estreitamente com o encenador Costantino Raimondi. A partir deste trabalho comum – escrita teatral, encenação, interpretação – vários espectáculos foram criados. Pouco a pouco, o dueto artístico criou o próprio estilo de teatro, bastante específico e fácil de reconhecer, onde a palavra está reinventada pelo jogo do corpo.