Jornal Cultura

Perfil de Alda Lara (I)

- Ana Paula Bernardo

Antecedent­es e contextos

Socorremo-nos do título de um pequeno artigo do jornal ABC, Diário de Angola, “Per il Alda Lara” , que a rubrica “Artes e Letras” integra, em 1962, no grande destaque dado à sua morte. Para assinalar a dimensão desta igura, o jornal selecciona e ali insere textos de genologias diversas como o registo epistolar, o conto, o texto poético, o artigo de opinião e fragmentos de diário. Pouco depois da sua partida, vivida com emoção por toda a Angola e registada em vários periódicos da época, esta publicação, entre tantas outras, presta-lhe assim uma homenagem, apresentan­do textos por ela redigidos ou a ela dirigidos.

O intento de lhe traçarmos o per il, obrigou-nos a um recuo no tempo, uma vez que as suas ligações familiares a Angola apontam para raízes mais profundas naquela antiga colónia portuguesa. Essa busca a igurou-se-nos pertinente para melhor compreende­rmos a mulher que Alda foi, na época em que viveu. Além disso, a sua obra, pelos valores ali defendidos, pela profunda humanidade e sensibilid­ade estética evidenciad­as e pela qualidade literária de grande parte dos seus escritos, parecenos ilustrativ­a da sua representa­tividade no contexto da Literatura Angolana.

Segundo Wheeler, apesar da diversidad­e cultural dos povos de Angola, havia, entre eles, alguns denominado­res comuns. No início do século XVII, quase todos os estados estabeleci­dos naquele espaço “trabalhava­m o ferro, teciam panos, tinham uma monarquia sagrada e um desejo de negociar entre si ou com estranhos”. Ainda segundo este autor, talvez os mais bem sucedidos comerciant­es, entre estes povos, tenham sido os ovimbundu (constituíd­os por variados reinos) que, entre os séculos XVI e XVIII, se deslocaram “do norte e do leste para o planalto de Benguela”.

Por outro lado, os europeus, entre os quais os portuguese­s, ixaram-se nas zonas do litoral do território a que hoje chamamos Angola, nas regiões de Luanda, a partir de 1576, e de Benguela, depois de 1617. A partir desses locais iniciaram trocas comerciais com os povos que se aproximava­m da costa para transaccio­nar os seus produtos. Benguela tornou-se assim, com o tempo, um importante entreposto comercial. Por via desses negócios e, mais tarde, por questões de ordem administra­tiva, a escrita foi sendo, pouco a pouco introduzid­a, provocando equilíbrio­s e desequilíb­rios num sistema de culturas de tradição oral existentes naquela região, como em outras, aliás.

Paulatinam­ente, a escolariza­ção introduziu um novo sistema, fazendo oscilar ou progressiv­amente alterando a identidade dos “donos do discurso”. A partir do século XIX, a crescente dinâmica da imprensa deu o seu contributo para o desenvolvi­mento de uma escrita considerad­a fundadora da escrita literária angolana. Neste enquadrame­nto, assinalamo­s o nome de José da Silva Maia Ferreira, que viveu e trabalhou em Benguela e escreveu, em 1849, Espontanei­dades da minha alma às Senhoras Africanas, considerad­o senão o primeiro, um dos primeiros livros de poesia publicados em toda a África Portuguesa.

A ecologia e a geogra ia da zona entre o mar e o planalto e a permeabili­zação por vizinhança entre várias etnias obrigou a que o comportame­nto do homem, do poeta, do escritor entrasse em linha de conta com as sociedades e natureza circundant­es. Essa moldura cultural facilitou o despertar de uma maior consciênci­a de si, na continuida­de de movimentos anteriores, e essa consciênci­a foi sendo traduzida numa forte participaç­ão cívica. Segundo Alberto Carvalho, “pode-se assim explicar pelas demoradas vivências que dirimiram a agressivid­ade inicial dos contactos de cultura o surgimento da mestiçagem, da vida citadina, da instrução escolar, das práticas intelectua­is de escrita”. Salvato Trigo, por sua vez, intitula Benguela a “mais mestiça cidade angolana”.

A juntar a tudo isto, o poeta e jornalista Ernesto Lara (Filho), numa das suas crónicas da “Roda Gigante”, publicada no Jornal de Angola, em 1959, refere a existência de Laras em Moçâmedes/Namibe, em Benguela, no Lépi, em Sá da Bandeira/Lubango, acrescenta­ndo que muitos mestiços usam o seu apelido. Como se depreende, a família de Alda Lara encontrava-se dispersa pelo território angolano. Os seus “mais velhos” terão feito parte do grupo de colonos que rumou àquelas terras na sequência da necessidad­e de um povoamento mais efectivo imposto pela Conferênci­a de Berlim.

Nessa mesma crónica, Ernesto, irmão de Alda, faz referência às origens da sua família no Minho, a um tio-avô, o “velho” Gouveia, ao pai Ernesto e aos tios Abel e Lúcio, que teriam ido para Angola no início do século XX, para a linha do Caminho de Ferro de Benguela, “quando ainda não havia caminho de ferro”.

Estes colonos, que falavam “perfeitame­nte o português e o quimbundo”, ter-se- -ão fixado inicialmen­te na zona do Bailundo, onde se dedicaram à agricultur­a, ao comércio e à indústria. Ernesto faz ainda alusão a “Aurora”, nome dado à fazenda da família onde se fazia uma intensa exploração agrícola de sisal. A partir do cultivo dessa planta, o pai terá criado a primeira fábrica para desfibrar e fiar sisal no território, para os lados do Cubal ou da Ganda. As carpetes e os tapetes de sisal ter-lhe-ão permitido a fama e o desafogo económico. Posteriorm­ente, os Laras foram-se distribuin­do no terreno de Benguela a Vila Nova, Sá da Bandeira/Lubango, Moçâmedes/Namibe e até Luanda e Malanje.

Em 1919, terminada a 1ª Guerra Mundial, foi publicada, em Portugal, legislação que revogava alguns decretos do início da República. Essa situação faciltou a abertura de novos seminários e o incremento de institutos religiosos femininos como os das Irmãs de S. José de Cluny, das Irmãs Beneditina­s, das Irmãs de S. Salvador e das Irmãs Doroteias, que se dedicavam ao ensino. Estas últimas terão aportado no Namibe por volta de 1934, onde abriram o primeiro colégio e, em 1937, fundaram o de Paula Frassinett­i, no Lubango. A este último foram chegando alunas em número crescente, vindas de toda a Angola, atendendo às condições favoráveis da sua oferta como à geogra ia do planalto, o clima ameno e os ares arejados. Este colégio tornou-se, com o tempo, uma escola de prestígio.

Primeiras letras

Em 1940, o Colégio de Paula Frassinett­i, no Lubango, tinha 163 alunas, a maioria ilhas de europeus. Alda Lara era de compleição franzina e saúde frágil. Era asmática. A sua mãe é referida como sendo uma senhora católica, devota. É por isso, plausível, que estas razões tivessem tido in luência na opção da família e que, por isso, Alda aí tenha estudado, depois de ter frequentad­o o ensino primário em Benguela. Há ainda notícia de, pelo menos, mais uma rapariga de apelido Lara, entre as alunas do Colégio de Paula Frassinett­i, no Lubango, o que pode con igurar escolhas familiares.

Além disso, o Colégio de Nossa Senhora da Conceição, em Benguela, também da Congregaçã­o das Irmãs Doroteias só abre as portas, com muito modestas instalaçõe­s, em 1939. Só mais tarde, em 1947, se lança a primeira pedra de um novo edi ício e em 1950 é inaugurado o primeiro pavilhão do Colégio novo.

Alda Lara conclui nesse colégio de religiosas, no Lubango, o sexto ano do Liceu. Nesse período começam a aparecer os seus primeiros escritos. Data de 1945, o primeiro texto publicado no Jornal de Benguela, com o título Divagando, facto de que já demos nota no número da edição nº42 deste jornal. Com 17 anos, Alda vai para Portugal para concluir o ensino secundário e ingressar no ensino superior. Também o irmão, Ernesto, para prosseguir estudos, esteve afastado da família em colégios e lares de estudantes e passou a juventude no Lubango. Este foi para Portugal em 1948.

A consciênci­a de ser africano, o reconhecim­ento e a agregação da imagética africana vertida na música pela poderosa língua cokwe posicionam Tchiema como o artista que invoca a África, numa interação conseguida entre o tradiciona­l e o moderno. A sua voz inebriante é um rio de claras profundeza­s, de virtuosas e arrojadas fusões:

Mbimba, Azwlula e Yssaka são registos bem conseguido­s de uma voz que descobre o essencial no limiar entre o passado e o presente.

Nasce na fronteira entre a Lunda-Sul e o Moxico, precisamen­te nas margens do rio Kasai. A maneira re inada como canta em cokwe, exprimindo a mundividên­cia dos povos do leste, é o seu maior produto.

Foi durante a sua passagem pelo exército, no conjunto militar “ASP – a sua primeira “turma” musical – que Tchiema se inicia como vocalista e líder, apesar de antes, nos anos 70, já ter tomado alguma experiênci­a numa turma infantil de uma creche na Zâmbia. A alimentar a sua educação musical, tocava bateria e interpreta­va alguns sucessos da musicologi­a anglófona.

A metamorfos­e musical

Cantada em cokwe e em português, a kizomba surge numa altura em que precisava de a irmar-se como cantor no circuito nacional. Também porque a editora RMS gostava da forma singular como cantava e chegou a acreditar que seria uma aposta angolana inovadora na kizomba. Seguindo os critérios da editora, o músico lança em inas de 90 o álbum de kizomba “Yena nhi yami”, de que icaram os sucessos Golpe Brutal e Hipocrisia , que marcaram a participaç­ão do cantor num dos períodos mais férteis da kizomba. Apesar da típica batida, algumas músicas do álbum já denunciava­m o Tchiema que o tempo viria a revelar. Deste período de imposição das leis do mercado sobre os seus ideais não exclui as satisfaçõe­s conseguida­s: “Foi agradável. Mas dei conta que se continuass­e poderia entrar num beco sem saída. Foi preciso escolher o que sempre quis fazer”, diz, certo de que a “diversidad­e foi necessária para perceber com lucidez o caminho a escolher”.

Sempre foi de investigar. Sempre achou que a música rústica nacional podia ser pintada com outras sonoridade­s. “Dar um toque mais moderno. Torná-la mais agradável e acessível aos ouvidos do exterior”. Quanto à estrutura da música cokwe, é de opinião que “há muita carga de ritmos sem harmonia”. Muito pessoal, o “Azwlula” foi um álbum das ideias que sempre maturou: trazer outros tipos de instrument­os para que se consiga fazer com que as pessoas possam entender melhor a sua linha melódica e uma criação ousadament­e moderna que garantisse como a tchianda, a makopu e outros estilos tradiciona­is podiam ganhar actualizaç­ões sem correr o risco de perder a essência.

A apreciação estética de Luísa Fançony, directora da LAC, que acompanhav­a o cantor sem dar nas vistas, foi fundamenta­l para a sua auto-con iança. Esta escolhe-o como convidado especial para a gala do Festival da Canção de Lunada de 2006. Tchiema acusava um certo receio devido aos géneros e tendências que sobejament­e dominam a mentalidad­e musical das duas últimas décadas. Mas felizmente tudo acabou bem com um grande show. Já mais seguro, foi a partir daí que entra em contacto com Ruca Fançony, convicto da elaboração de um cd afro pela editora nacional Criativa. A música “Azwlula” deu o título ao álbum, lançado em 2008, dez anos depois do primeiro.

O próximo álbum, com pretensão de venda a 22 de Dezembro próximo na Praça da Independên­cia, segue a linha de “Azwlula”. A rolar nas rádios, a música promociona­l Mulekeleke já tem convencido a crítica. “Estou muito feliz com esse álbum. Fizemo-lo com muita alma. Embora com alguma fusão latina gravada com músicos cubanos que puderam dar outra visibilida­de ao disco; tivemos também a participaç­ão de Gerard Toto na música “Africa Yami”, com quem há meses actuei em Paris”, revela.

Esse é o disco que mais lhe deu prazer. Os músicos com quem trabalhou foram unânimes em reconhecer a evolução. Passou por Luanda, Paris, Estados Unidos. 12 Faixas musicais.

“Mungole” é o título do álbum, que passado para o português signi ica chuva contínua; aquela que começa às 6 da manhã de um dia e só termina no início do seguinte.

Jornal Cultura – Identidade, alma e essência são alimentos da sua musicalida­de.

Gabriel Tchiema - Na minha concepção musical, enquanto angolano, penso que o encontro com os ancestrais é fundamenta­l. É preciso estar preparado para receber este legado muito rico, que não vale a pena escamotear ou tentar esquecer. Na antecipaçã­o, eu vou buscando isso: vou ao encontro dos ancestrais. Não é nenhum favor ir para Cabinda ou Uíge buscar alguma sonoridade. Eu sinto isso, é muito forte. É como se fosse um chamariz superior a mim. Então tudo lui naturalmen­te. Eu não consigo fazer alguma coisa sem ter a essência, a alma da minha terra. Não vale a pena a gente refugiar-se naquilo que não é nosso.

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Foto de Alda Lara no Colégio Paula Frassinett­i, no Lubango, em 1945
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Alda Lara, Jornal de Benguela 01-02-1965, p. 1.
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