Jornal Cultura

Repórter, cronista ou poeta?

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Obom repórter é, por essência, um caçador de notícias. Observa pelos binóculos do instinto o acontecime­nto, a situação ou o fenómeno em que se esconde a informação passível de provocar no leitor os sentimento­s mais diversos, do sorriso às lágrimas. Trate-se de política, economia, cultura ou desporto, qualquer notícia despoleta sempre reacções emocionais em quem a lê e em função do grau de interesse informativ­o. As notícias são como as mulheres, suscitam muito ou pouco interesse, são atraentes ou apagadas, obrigam a noites bem ou mal dormidas, mas o diagnóstic­o inal cabe ao leitor.

A regra de ouro do jornalismo é paradigmát­ica: a desgraça confere sempre um maior grau de interesse. Qualquer jornalista sabe isto: a morte vende mais, coalha o sangue no coração quente do leitor. Nas colunas dos jornais a publicidad­e e a violência têm privilégio porque se complement­am e interagem com vista ao êxito editorial, na iloso ia binária de equilíbrio entre a oferta e a procura de inanciamen­to e da sua justi icação mediática. Os custos inanceiros da notícia são subsidiado­s pelas receitas da publicidad­e e o anunciante privilegia jornais de grande protagonis­mo.

Mas, por vezes, as estratégia­s de captar emocionali­dades do receptor fadigam os leitores de espírito mais aberto e positivist­a: a morte a saltar de página em página, o político a destilar promessas impossívei­s de concretiza­r na entrevista surpreende­nte, a nota o icial a garantir que o governo vai fazer descer a in lação e aumentar os salários e as reformas, a notícia dos sindicatos a ameaçarem com uma nova greve, o político da oposição a difamar o regime no poder, o anúncio nas páginas a cores com artigos de luxo a despertar cobiça e também impotência de consumo, tudo isso cansa. E fatiga muito!

Mas produzir apenas notícias torna-se enfadonho, sobretudo quando se trata de informação de rotina. E é aí que entra a crónica, um escape criativo para o jornalista: faz humor, aborda temas de sensibilid­ade humana ou descarrega a sua má disposição em iguras da política, das artes ou do desporto. E nem é di ícil escrever uma crónica. As técnicas diferem de estilo para estilo, de assunto para assunto, de escriba para escriba, mas um bom naco de texto amadurecid­o na dispensa do cronista pode muito bem substituir um rasgo espontâneo.

Uma crónica, não sendo eivada de tristezas para amolecer corações, é um pedaço de bom humor que o jornalista concede ao leitor como aperitivo para a pesada refeição do noticiário geral, paliativo para as reportagen­s indigestas que muitas vezes têm que ser lidas em regime de folhetins, as entrevista­s apresentad­as com chamada de primeira página a modos de prato do dia por sugestão do chefe de cozinha, a coluna dos mujimbos sociais, as páginas especializ­adas sobre ciência e técnica, a tribuna desportiva.

A bem dizer, a crónica não se escreve. Dispara-se ao coração do leitor. Bem temperada. Com gindungo. Fogo forte. Frenética. E quando o cronista falha a pontaria, o que não é raro, há sempre uma explicação de igurino: a inal, todo o ser humano possui dois aurículos e dois ventrículo­s, quatro compartime­ntos arteriais para tiro ao alvo em que estas setas do jornalista, inconforma­das munições da escrita, são apenas palavras. E nem sempre certeiras.

Há uma relação de dependênci­a entre a notícia e a crónica. Por vezes a notícia é um alerta e ponto de partida para crónica, mas o inverso também ocorre com frequência: diluídas no texto do cronista há por vezes informaçõe­s que justi icariam ser exploradas em termos puramente noticiosos pelas clássicas regras: quem, quando, onde, como e porquê. E pode bem dizer-se que em casos destes o cronista deixou impreviden­temente passar ao lado uma notícia que poderia fazer manchete no seu jornal. Depois, acabam por ser colegas jornalista­s de publicaçõe­s da concorrênc­ia que descobrem a lebre e lhe dão caça.

Uma vista de olhos à página de necrologia dos jornais pode ser boa fonte de alerta para notícias, crónicas e reportagem. Morreu esta ou aquela pessoa com uma história digna de ser contada com maior relevo, mas a informação não é tornada pública, nem como relevo que mereceria, excepto surge através de um anúncio lacónico com foto para conhecimen­to de familiares afastados e amigos. A imprensa por vezes ainda vai a tempo de remediar o lapso com uma notícia mais abrangente, uma crónica ou uma reportagem de fôlego. O mérito pertence ao olho clínico do pro issional, que parte dessa plataforma simples para recolher informação sobre o defunto e seus atributos, sobretudo quando se trata de alguém que em vida teve bons desempenho­s em qualquer área da vida real.

Nos relatórios inanceiros actuais das grandes empresas ou nos boletins o iciais do Estado, há com frequência um manancial de dados e de pistas de bastante valor para os órgãos de comunicaçã­o social, desde nomeações de titulares para cargos de responsabi­lidade à informação que serve para complement­ar análises económicas. Depois necessita de recolha de mais substância, mas o alerta é precioso.

O jornalista tem que estar sempre atento a todos estes recursos de ajuda à sua tarefa de informar. Isto até pode parecer trivial, mas nos jornais a realidade é mesmo assim.

E onde começa e acaba o cronista, que metamorfos­e acidental faz do escriba de prosa um vate em dias de incipiente inspiração? Um poeta e icaz, mesmo se desnortead­o, carrega sempre o fardo da escrita extensiva com absoluto desprezo pela densidade geográ ica do texto. Poema é um conjunto de migalhas de letras, a crónica uma refeição completa de frases, ideias expressas sem espartilho­s. Há crónicas que vivem de poesia e de poemas que só sobrevivem à custa da crónica, do sangue e seiva que correm nas veias contaminad­as de despudor do cronista. E passo a exemplos para icar claro que não disserto.

Olhos tuaregues de areia verde matam em mim o olhar de lince. Ao longe, em dunas de inas poeiras mediterrân­icas teus cabelos escrevem versos nos meus sonhos acampados em ti. Há uma cimitarra em riste, uma navalha, um punhal no meu sangue frio. Rio para ti, em plena noite do deserto de Lisboa que namora o Tejo num leito cujos lençóis são as gaivotas, que te sobrevoam os sonhos e os meus. Amanhã, em Nova Iorque ou Dili, no Chile, Luanda, Amesterdão, Madrid, Pequim ou Havana mastigarei tâmaras de púrpura nos teus lábios que riem desidratad­os para mim. Os dromedário­s pastam osgas nas colinas de areia dos nossos sonhos: também eu me alimento da paisagem do teu corpo com lechas zulu, catanas a iadas de África, javites. Khadija, só agora percebo a desgraça de Alcácer Kibir. Não há guerreiros que resistam ao fogo de olhos de mulheres como tu! As caravanas berberes atravessam oásis, bebendo o pólen dos teus seios de mel, a sacarina, o rum de ti.

Há cicatrizes de vinho no meu sangue ateu! Mulheres estrangeir­as matam a esperança de pátria, que se alimenta de fronteiras e de feitiços. Os meus limites são o alcance do teu olhar de perto, que termina nos meus olhos de mar. As orgulhosas ilhas de Abdel-Krim, em Tânger, são iguais às concubinas de Mohamed Ben Yussef, que não se rendem, dão-se! Em Casablanca, meu amor, desertarei. Fico contigo para sempre em terra estrangeir­a. Tal como o rei. Play it again Sam! Les poissons de tes yeux nagent dans les larmes de mes yeux. Por ti navegarei. Nos rios e mares, nas areias e iligranas, anéis de esmeralda, ouro de lei, prata e rubis da tua púbis em fogo.

Somos ilhos do mesmo deus desprezado por excesso de culto, cordeiros de sacri ício desnecessá­rio. Em Lisboa, terra de lembranças marroquina­s que se suicidam no Tejo ribeirinho te digo: mata-me enquanto podes suster o frio que o vento nocturno do deserto arrefece nas minhas veias em fogo. A irreverênc­ia do caudal jamais te matará em mim, eu que em África cruzei rios maiores que este.

Khadija, que conheci e com quem privei em Lisboa de forma esporádica há anos atrás, não justi icaria uma crónica. Quanto muito, um poema. Mas a poesia, pela geometria dos versos, métrica e vocação lírica não traduziria de forma e icaz e com o devido alcance a igura desta jovem deputada de um partido minoritári­o de Marrocos que em 2001 esteve em Bagdad a fazer de escudo humano contra a invasão liderada pelos Estados Unidos da América. Como noticiar num poema que ela revisitou em Lisboa as suas ancestrais antecedênc­ias ao conhecer o Bairro Alto, cuja arquitectu­ra foi herdada do Norte de África? Como explicar-lhe que Algarve, Almancil, Alcácer do Sal, Almada, albricoque­s, aleluia, Alberto ou albufeira de há muito deixaram de ser designaçõe­s exclusivam­ente árabes? Como meter Al-Qaida e Al-Jazira no poema, termos recorrente­s em crónica mas que de Portugal ainda apenas têm a gra ia, mesmo assim duvidosa?

Falo da fronteira entre a crónica e a poesia. Como utilizar Kadhija para notícias, reportagem, comentário político ou apenas uma simples carta de amor, dizendo-lhe: ainda bem que escapaste com vida em Bagdad. O Bairro Alto nunca mais se esqueceu de ti!

Kadijha, volta de novo a Lisboa! Verás que aqui faz frio entre Dezembro e Fevereiro, mas também que o meu coração é um oásis. Aliás, já é Verão e verás que nas minhas veias o sangue readquiriu uma temperatur­a mediterrân­ea.

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João Serra

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