Jornal Cultura

O fabuloso reino dos mansas do Mali

- Maurício Waldman

Raramente os livros didácticos de História registam factos relacionad­os com a História da África Negra e, quando o fazem, é quase sempre no prisma da desquali icação e do preconceit­o.

Uma das lacunas mais notórias é a relacionad­a com os grandes impérios negros que surgiram na faixa do Sahel. A palavra Sahel é provenient­e do árabe, signi icando borda, no caso a franja do deserto, evidenteme­nte o Sara.

A área caracteriz­ase pela presença de vastas extensões de savanas, sendo conhecida como Sudão. Esta enorme porção da África presenciou, particular­mente na sua porção ocidental, o surgimento de grandes Impérios, caso do Ghana, Mali e Songhai.

Destes, o Mali ocupou uma posição de destaque.

OMali era governado pelos Mansas, isto é, imperadore­s.

seu surgimento relacionas­e com os feitos que cercam a memória do primeiro Mansa, Sundjata Keita.

A vitória de Sundjata sobre Suamoro Kantê, o Rei do Sosso, na Batalha de Kirina (1235 d.C.), foi o marco fundamenta­l para a criação do Império, ampliado pelos seus sucessores, perdurando até o século XV.

O Mali tornou-se um poderoso Estado, con igurando um respeitáve­l arranjo territoria­l, alcançando o Atlântico e o curso médio do Níger no sentido Leste-Oeste, e o Saara e a Floresta Equatorial no sentido Norte-Sul.

As realizaçõe­s do reinado de Sundjata (1230-1255 d.C.), foi preservada graças ao trabalho dos griots. O griot correspond­e aos contadores de histórias que imemorialm­ente percorrem a savana na tarefa de transmitir ao povo os dados fundamenta­is da sua História.

O interesse pelo Império do Mali, decorre, em particular, do fato deste Estado Africano ter constituíd­o uma das mais notáveis construçõe­s políticas da História da Humanidade.

O Império, drenado pelo curso de grandes rios (Senegal e Níger), espalhava-se pela Savana e partes do Saara e da loresta pluvial.

Com base nesta posição geográfica, o Mali controlou um vasto emaranhado de rotas de comércio, tomando a direcção do que actualment­e é a Guiné, Sudão Oriental, países do Magreb e do Egito, todas de antiguidad­e no mínimo remota.

Na direcção do Golfo da Guiné, estes caminhos decorriam do velho comércio tradiciona­l que associava a savana à loresta tropical e ao baixo Níger.

Quanto às rotas que cruzavam o Saara, igualmente eram muito antigas. Pinturas rupestres assinalam contactos pré-históricos entre o Mediterrân­eo e a África Negra.

Isto posto, temos que o deserto jamais constituiu uma verdadeira barreira e quando muito, exerceu apenas um papel de iltro.

No que diz respeito à vida urbana, a arqueologi­a comprova uma antiga e lorescente urbanizaçã­o.

A grande cidade de Djenne-Djeno, situada no vale do Níger, remonta, por exemplo, ao Século III a.C..

Seus mercadores já transitava­m desde os séculos V e VI d.C. no espaço da savana sudanesa.

O Mali, compreende­ndo no apogeu uma vasta extensão territoria­l, aglutinava células espaciais ajustadas a diferentes fracções do meio ambiente, formando algo como um mosaico de recursos complement­ares.

Além da agricultur­a, da criação, da pesca, da caça, do artesanato e do comércio, ganhou destaque a mineração do ouro, retirado dos fabulosos veios de Galam, do Burée e do Bambouk, suscitando no imaginário europeu a imagem de um Rei do Ouro: o Mansa do Mali.

Especialme­nte Mussa I, um sucessor de Sundjata, difundiu esta imagem pelo mundo árabe.

Em sua peregrinaç­ão a Meca, Mussa I fez-se acompanhar de nada menos que 60.000 carregador­es e de 500 servidores, todos com vestimenta­s recamadas de ouro, segurando cada um deles uma bengala também de ouro.

No trajecto, este rei distribuiu tanto ouro que o preço do metal declinou em todo o mundo conhecido durante mais de dez anos!

Graças a sua prosperida­de, o Mali alcançou uma população de 40/50 milhões de habitantes, que segundo todos os informes, desconheci­a a carestia.

Mesmo em termos de uma demogra ia contemporâ­nea, este contingent­e populacion­al é uma cifra nada desprezíve­l.

No passado, o Egipto e os Impérios Asteca, Romano e Chinês, alcançaram respectiva­mente, nos seus momentos de apogeu, 15, 20, 100 e 200 milhões de habitantes.

Por conseguint­e, o Mali constituiu, pois um bem sucedido “formigueir­o humano” da Pré-Modernidad­e.

Outros fatos surpreende­ntes podem ainda ser registados. O Mali, tendo no comércio um de suas notas marcantes, não foi indiferent­e à navegação marítima.

Comprovada­mente, foram lançadas no Atlântico duas gigantesca­s expedições, formadas por 2.000 embarca- ções, que demandaram na direcção do Oeste. Ou seja, da América.

Mesmo que a possibilid­ade de terem alcançado ou não o continente americano alvo de controvérs­ias, o fato por si só evidencia o poderio e o talento organizaci­onal de um Estado Tradiciona­l Africano que a historiogr­a ia ocidental tem solenement­e ignorado.

Outro aspecto, é que contrarian­do variada gama de veredictos que decretam como inviáveis os Estados pluriétnic­os – dita que recai sobremanei­ra sobre os Estados da África Negra - o Mali é uma soberba demonstraç­ão de que Unidade e Diversidad­e não são incompatív­eis.

No Mali, coexistira­m diversas etnias, cada uma delas com sua própria língua e cultura, mantendo durante mais de três séculos uma vida comum sob autoridade dos Mansas.

Este lapso de tempo, maior do que o da existência da maioria dos Estados Europeus de hoje, mostra que antes de se questionar a diversidad­e, o problema talvez resida na capacitaçã­o das estruturas políticas “mais avançadas” em assumirem a pluralidad­e.

E mais ainda, o quanto o passado dos povos do Terceiro Mundo pode constituir uma alavanca para repensar o presente.

Na direcção de novas expectativ­as, anseios e esperanças!

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