"Reduzido, pagará". A questão dos baculamentos
Lançado na véspera do seminário
lançado na véspera do seminário internacional sobre “Njinga a Bande e Aimé Césaire, o Livro dos Baculamentos, da co-autoria de Selma Pantoja e Aida Freudenthal, permite-nos aprofundar o conhecimento sobre a conversão do sistema tributário e da rede comercial existentes no Ndongo no início do século XVII. Aida Freudenthal esmiúça o conteúdo da obra, uma peça central no entendimento das relações de poder estabelecidas no início do séc. XVII entre o reino do Ndongo e os representantes da Coroa portuguesa instalados em Luanda.
Olivro dos baculamentos trata-se de um conjunto de documentos (autos) escritos há quatro séculos na região do antigo reino do Ndongo e que acabam de ser editados sob o alto patrocínio do Ministério da Cultura.
Para a assinatura desses autos, as autoridades africanas (sobas) compareciam com vasta comitiva de dignitários, levando consigo os símbolos do seu poder. Um numeroso grupo de assistentes africanos e europeus testemunhavam os termos acordados no auto, no qual ambas as partes assumiam compromissos: os sobas de pagarem o baculamento anual a Luanda, sob a forma de peças d’ índias, óleo, massa, encombos, galinhas, almadias, etc; os funcionários enviados de Luanda, o de estabelecerem o modo de cobrança (local, mês e quantias acordadas) e o de entregarem recibos dos valores recolhidos, além de prometerem ajuda militar no caso de hostilidades entre sobados. Depois de assinado pelos presentes, o registo escrito desses autos era tomado como o melhor garante para ambas as partes, embora representassem interesses opostos.
Com efeito eram tão importantes para a Coroa portuguesa, pelos rendimentos que prometiam, que os reis Felipe II e Felipe III de Portugal ordenaram que o original permanecesse à guarda do feitor da Fazenda em Luanda, enquanto uma cópia (treslado) desse original devia ser enviada a Lisboa. Tendo-se perdido esse Livro original, talvez na fuga do governador para Massangano quando os holandeses tomaram Luanda, só conhecemos o treslado enviado a Portugal e encontrado inesperadamente na Biblioteca Pública de Évora em 2002.
De que trata a inal esse manuscrito de mais de 300 págs.? Elas traduzem a decisão de Luanda sistematizar o registo dos nomes e territórios dos 202 sobados que integravam o reino do Ndongo, a im de sujeitá-los a um novo sistema iscal. Esse processo decorreu entre 1619 e 1630, um lapso de tempo que vai estar em foco neste Colóquio dedicado a Njinga Mbandi. Este Códice é pois contemporâneo dos primeiros anos da actuação política de Njinga, da sua ascensão ao poder no Ndongo e depois na Matamba.
Haviam decorrido cerca de 40 anos desde a fundação de Luanda, um período que testemunhou numerosos con litos armados não só reveladores das intenções dos invasores europeus como das estratégias adoptadas pelos senhores das terras entre o Dande e o Kwanza. Estava fundamentalmente em jogo o controle da população mbundu e do seu potencial produtivo que os sobas obviamente não queriam perder. As guerras sucediam-se e o seu desfecho ora era favorável aos ambundu ora aos portugueses. “Reduzido, pagará” era a expressão que em português signi icava que os sobas submetidos ao poder de Luanda, pagariam inalmente os impostos (baculamentos).
Por consequência, a questão fundamental que condicionou a assinatura dos autos deste Livro dos Baculamentos pelos sobas do Ndongo, foi a defesa do seu poder sobre os seus “filhos”, contra a invasão das suas terras pelos corpos militares enviados por Luanda, sede embrionária do poder dos governadores nomeados pela Coroa portuguesa.
Se o contexto histórico que lhe deu origem é já conhecido nas suas linhas gerais, graças aos estudos publicados por Birmingham, Heintze, Miller, Coelho, Pantoja, Thornton, e outros mais, que novidades podem trazer documentos deste tipo para a investigação futura?
Leituras de duplo sentido
Por um lado, vemos con irmadas tendências e interpretações já enunciadas pelos autores citados, a propósito das hostilidades entre africanos e portugueses; embora escrito por portugueses, entendemos agora melhor os objectivos e instrumentos aplicados ao trá ico de pessoas; por outro lado, a leitura das entrelinhas permite questionar decisões políticas e económicas contraditórias ou mesmo antagónicas. Este é um dos casos em que, procedente de um cenário montado pelos “conquistadores” portugueses, as fontes possibilitam leituras de duplo sentido.
Os portugueses visavam desenvolver o trá ico (iniciado há mais de um século no reino do Kongo), pela extensão de uma rede envolvendo áreas de captura cada vez mais amplas para o interior e para sul. Constataram porém que não o conseguiriam sem alianças com as autoridades locais. Por seu lado, os sobas das regiões aqui consideradas foram delineando estratégias [concertadas] para enfrentar as ameaças à ordem estabelecida nos sobados, face aos perigos de agressão externa.
Condicionando simultaneamente a circulação e a permuta de pessoas e de bens, a guerra afectou negativamente toda a estrutura social mbundu. De facto, sendo grandes as pressões sentidas pelas autoridades locais e pelo próprio ngola, estamos convictos que eles procuraram gerir de forma pragmática as distintas situações, de modo a minimizar custos e danos resultantes das guerras, das fomes, das epidemias, de dissenções internas, etc…
Ora fazendo guerra ora aceitando pazes, o recurso à negociação com os portugueses foi utilizado a im de ganhar tempo e reorganizar as forças internas. Essa estratégia alcançou alguns resultados favoráveis mas não impediu uma perda gradual de territórios ao longo dos primeiros 50 anos (1576-1630). Em particular nesta década de 1620, agressões militares muito intensas tiveram um efeito claro: desgastaram os recursos humanos
dos ambundu, ora dizimados ora enviados à América aos milhares pelos tra icantes locais e contratadores, com o apoio da administração em Luanda.
Ao mesmo tempo, extorquiram parte considerável da produção agrícola em proveito dos funcionários régios destacados pelo governador nos presídios. Imposto aos sobas mais debilitados, o pagamento de um tributo directo à Coroa (o baculamento) implicou a apropriação por Luanda de anteriores formas de tributação no reino do ngola. Em princípio o que mudava era a entidade colectora do tributo, deixando o ngola despojado das contribuições dos seus súbditos o que não era coisa de somenos importância. Menos tributos implicariam menos alimentos, menos panos, menos utensílios, menos escravos –abika- en im menos poder.
Mas a realidade encarregar-se-ia de pôr à prova essas intenções políticas. Se este era o objectivo principal do Livro dos Baculamentos, a prática veio revelar muitos desvios e contratempos na execução do plano iscal emanado de Luanda. No próprio Códice uma carta régia revela que o produto anual do tributo era muito inferior ao desejado pela Coroa portuguesa. Como explicar esses resultados? pelos desvios de peças d´índias (escravos) ocorridos nos próprios presídios; pelas condições de cobrança, acompanhadas de ameaças, violências, abusos e coacção, não respeitando o que fora previamente acordado pelos sobas; pelas escusas destes ao pagamento, acompanhadas de queixas e de justi icações muito signi icativas do estado de empobrecimento entretanto instalado; e inalmente conclui-se que a fuga e deslocação de alguns sobas e seus “ ilhos” para locais mais distantes dos presídios e fortalezas foi uma estratégia recorrente que reforçou as hostes militares de Ngola Mbande e particularmente de Njinga Mbande após 1624.
Contudo o texto deste Códice diznos ainda mais. Embora em discurso indirecto, o Livro dos Baculamentos traz até nós a voz das autoridades locais – os sobas - sendo possível captar a sua habilidade política perante os constrangimentos, e o recurso a subterfúgios e a negociações com os enviados de Luanda.
Registe-se alguns exemplos dessa estratégia política:
- encostar-se a sobas mais poderosos implicava que estes deveriam proteger os mais “pequenos e pobres” em troca de alguns compromissos
- fugir para a mata, longe dos cami- nhos mais concorridos era um meio de evitar o contacto com os capitães dos presídios e seus enviados – “não se encontra este soba”; “está alevantado e não paga”.
- “fechar os caminhos” signi icava proteger um sobado da entrada ou passagem de estranhos, e evitar desse modo a circulação de pessoas e de mercadorias, impedindo a realização das feiras (pumbos e kitandas) e o pagamento de mais impostos.
- invocar os efeitos da guerra como a destruição de aldeias e de colheitas, roubos, incêndios e a captura de jovens, que aniquilavam o potencial produtivo dos sobados, e justi icavam a falta de pagamento do baculamento.
- recusar o pagamento em duplicado servia para denunciar a avidez e os abusos dos militares dos presídios que desviavam parte dos valores recebidos (em particular as peças d´índias) em proveito próprio.
- queixar-se que os caminhos estavam “cheios de ladrões”, alguns acolhidos nas fortalezas, que roubavam aos sobas os valores destinados ao baculamento.
Os “línguas da terra”
Além do conteúdo económico, social e político, este Livro composto por escrivães portugueses, mediados por intérpretes, os “línguas da terra”, introduz outro tópico que merece parti- cular atenção: os documentos apresentam uma enorme riqueza linguística própria de uma conjuntura que requeria, a todos os níveis sociais, a comunicação entre pessoas e culturas bem distintas.
Como podiam africanos e portugueses exprimir as suas intenções, ao comunicar os termos de troca, intermediar os con litos, negociar, entender a terminologia política contida nas escrituras e tratados, ou entender a terminologia política ou religiosa?
Há muito que se encontram referenciados os “línguas da terra”, reconhecidos pela historiogra ia africana como preciosos intermediários comerciais, embaixadores e tradutores em muitos actos do quotidiano. O Lº dos Baculamentos talvez seja dos mais antigos que regista a presença constante em todos os actos o iciais de intérpretes africanos, em situações de paz e de guerra. A sua função era multifacetada, independentemente da sua condição de civis, militares ou religiosos: foram medianeiros diplomáticos em negociações entre o ngola ou os sobas e os portugueses. A maior parte deles eram naturais da terra, pelo que sabiam falar bem kimbundu e tinham aprendido português em circunstâncias várias.
Outro registo chamou a nossa atenção. No domínio da actividade tanto económica como política, foram inventadas formas linguísticas resultan- tes da interacção entre falantes de kimbundu e falantes de português, revelando as eventuais origens de uma língua franca que viria proporcionar o entendimento mútuo. Sabe-se porém muito pouco àcerca da expressão linguística em terras de fronteira. Talvez estes documentos possam alargar a nossa compreensão dos contactos estabelecidos entre ambundu e portugueses no século XVII.
Parece-nos óbvio que a sua transcrição contém um enorme potencial para estudos futuros, icando a aguardar a investigação oportuna dos linguistas angolanos, nomeadamente no que respeita à análise da língua kimbundu falada na época (necessariamente distinta da actual) e dos empréstimos mútuos de vocábulos e expressões ocorridos entre o kimbundu e o português.
Esperamos que a presente edição possa motivar não apenas o interesse imediato (só por si já não seria coisa pouca), como incentivar a pesquisa necessária sobre esta época, sobre os habitantes e as estruturas sociais e políticas do reino do Ndongo, sobre a toponímia da região, a localização dos sobados e a hierarquia de poderes. A inal trata-se de desenvolver a investigação em torno do enquadramento histórico da personagem homenageada, Njinga Mbandi, como símbolo incontornável da história angolana.