Óscar Ribasmais uma vez injustiçado
A propósito dos “11 clássicos da literatura angolana”
Tive a honra de estar presente no lançamento do projecto dos 11 clássicos da literatura angolana na concorrida cerimónia na Mediateca de Luanda, cujo pano de fundo institucional foi marcado, curiosa e estranhamente, com assinalada ausência dos titulares dos pelouros em questão: o livro e a leitura, nomeadamente os legítimos representantes do MED e o MINCULT.
Onze autores e 11 livros, correspondendo ao mês e dia da dipanda, foi a fórmula mágica e extraliterária encontrada pela equipa de peritos do projecto para catalogar a literatura angolana, em matéria de número de clássicos e respectiva obra (pretensamente) mais representativa.
Nestes termos, por mais generosa e louvável que seja a ideia no sentido de estimular o gosto pela leitura e o desenvolvimento do senso crítico dos potenciais leitores da recolha, os organizadores pecaram não só por excesso como por defeito, colocando-se várias questões a propósito.
Os “ideólogos” do projecto valoraram mais alguns autores, em detrimento de outros mais representativos da literatura angolana, como é o caso, por exemplo do proscrito Mário António, o mais pro ícuo e prolífero da geração da “Mensagem”, Viriato da Cruz e mesmo Mário Pinto de Andrade. Este último o primeiro poeta da modernidade literária angolana a escrever um poema em Kimbundu, intitulado Muimbu ua Sabalu, sem prejuízo do seu conto “Ême muene eme ngana”!?
Acresce dizer que, mesmo ainda entre os antologiados icamos por saber qual o critério clássico que levou a catalogar o antecessor da literatura angolana, José Maia Ferreira, acrescido da fragilidade estrutural da sua poética, para além da ainda “não territorialização simbólica do espaço do que é hoje Angola”, para lá da ixação do imaginário português que a incorpora, sendo que o “corpus” de textos e autores da literatura angolana enquanto um todo, só ocorre em inais do séc. XIX e princípios do séc. XX com a geração do bem achado Cordeiro da Mata, e encontra a sua consolidação na fase de “quase não literatura” de 1930/194548 com os seleccionados Assis Júnior e Castro Soromenho, que ambos juntos em termos de envergadura literária - em nosso modesto entender - não superam o peso especí ico de um dos mais representativos, senão o mais pronunciado ícone, entre os autores angolanos e membro da sua geração, Óscar Ribas, cuja portentosa obra é sobejamente conhecida do grande público e mais uma vez injustiçado como na antologia dos contos já recenseada aqui nestas páginas, reeditando uma rematada negligência senão mesmo uma gravosa omissão, que põe mais uma vez em causa os critérios assaz subjectivos que presidiram à presente recolha que, segundo os seus mentores, para o ano haverá mais uma nova fornada de clássicos. Hilariante, não!?
Já agora que molhamos a sopa, uma questão se nos coloca: quantos clássicos haverão na literatura angolana?! Ou será uma fuga em frente face à rematada incongruência ou ante a interpretação errónea do nosso rico e diversi icado “processus” literário?!
Com quantos clássicos se faz uma literatura?
Aqui chegados, uma questão não se quererá calar: com quantos clássicos se faz uma literatura? Aqui ou noutra qualquer partida do mundo?
O número mesmo pouco rigoroso dos 11 clássicos revela que uma literatura não se faz com tantos clássicos assim. Ainda assim, que dizer dos clássicos doutras literaturas africanas, cujo percurso é similar ao da nossa e não só!?
Em boa e sã verdade, cingindo-se apenas aos Cinco PALOP, e salvaguardas as devidas proporções, a literatura santomense não se sente confortada apenas com quatro ou cinco autores como os seus clássicos, designadamente Francisco Stockler, Costa Alegre, Francisco Tenreiro, Tomás Medeiros e mesmo Alda Espírito Santo!? No caso moçambicano, a literatura do país irmão do Índico não se sentirá bem de saúde espiritual com apenas os clássicos Rui de Noronha, José Craveirinha, Noémia de Sousa, Mia Couto, Luís Bernardo Honwana ou mesmo Orlando Mendes ou um Mutimati Bernarbé João e, já agora, o nosso coetâneo Ungulhani Ba ka Cossa? A literatura caboverdiana, das mais pujan- tes entre as literaturas africanas, não passará bem apenas com os clássicos José Lopes, Pedro Cardoso, Januário Leite, Baltazar Lopes, Manuel Lopes e um poeta como Jorge Barbosa ou o romancista Teixeira de Sousa, o poeta António Nunes, que sonhou com Cabo-Verde feito jardim vencida a estiagem amanhã, o novelista Aurélio Gonçalves, ou os poetas João Vário e Corsino Fortes, apenas para citar estes clássicos da literatura do arquipélago, divididos pelo drama evasionista entre quer- icar e ter-de-partir ou vice-versa. Em último turno, e guardadas as devidas proporções, a literatura da Guiné-Bissau, a mais carente entre as cinco e de “arrancada tardia”, com o jornal “Pró-Guiné, em 1924, será menos rica com a contribuição decisiva apenas dos três ou quatro clássicos
Amílcar Cabral , Vasco Cabral e Hélder Proença ou um José Carlos Shwartz, dos “momentos primeiros da construção”!?
Nesta vereda, alargando a nossa visão analítica para o resto do Continente, a literatura congolesa icará menos pobre com os seus raros clássicos como Tchaya U’tamsi, o poeta “acocorado na sua consciência”, o romancista Henri Lopes, ou a L. senegalesa, com o celebérrimo poeta da Negritude, Leopold Sedar Senghor, ou no caso a da Guiné Conackri, com Aliuone Fantouré, autor do Círculo dos Trópicos e agraciado com um prémio de literatura africana, em França, no caso dos países africanos francófonos; ou as literaturas anglófonas, como a nigeriana icarão menos requintadas com apenas dois ou três clássicos, como Wole Soyinka, Cipryam Ekwensy ou o celebrado Chinua Chebe de “O mundo se despedaça”(?!) e já agora a queniana icará menos famosa na matéria, com o seu mais pronunciado clássico e que escreveu um romance na sua língua materna, o kikuyo, de sua graça o professor que recusara cátedra em Londres, o famoso Ngugi Wa Thyongo?
Legitimidade discursiva
En im, não nos parece que seja relevante o critério numérico, mais sim a legitimidade discursiva em matéria de classicismo. Em homenagem à nossa historiogra ia literária há que fazer apelo à objectividade e à verdade histórica da nossa produção textual, sob pena de produzirmos uma boa súmula, mas não uma recolha honesta, não resistindo ao teste da verdadeira História da Literatura Angolana na hora da sua elabo- ração, sendo que os critérios para a atribuição de um tal estatuto a um ou outro autor com menos merecimento, não seja feito em detrimento de estoutro ou aqueloutro clássico digno de registo e que dispensa desde logo comentários.
Extrapolando, em relação à velha Europa, Portugal terá assim tantos clássicos ou se recortam apenas os nomes de Camões, Garret, Junqueira, Eça de Queirós, do disputado os “Maias”, Fernando Pessoa, o discreto Miguel Torga, um Aquilino Ribeiro, e já agora citamos também o celebrado José Saramago ou mesmo o escritor e médico-psiquatra, Lobo Antunes, que ombreava de jacto com o Nobel português. Ainda no caso europeu, a literatura russa terá no seu bojo mais do que os dedos de uma mão em matéria de clássicos: Dostoievski, Leão Tolstoi, Maiakovski, Proust e pouco mais, incluindo o prémio Nobel naturalizado norte-americano, Brodski, em meados dos anos 80? E a literatura inglesa idem, não terá apenas um Skakespeare, um Eliot e pouco mais? Na Alemanha, um Gunther Grass seria negligenciado na hora de coleccionar os clássicos do séc. XX, como ocorreu entre nós com o invisual!?
Saltando para a América Latina, a terra do cultivado realismo mágico, onde os clássicos não abundam como cogumelos no tempo da chuva, teremos um argentino como Córtazar, um peruano como Vargas Lhosa, ou um Gabo, conforme também é conhecido o autor do célebre “Cem anos de solidão”, Gabriel Garcia Marquez e suas respectivas “Putas tristes” da rua da amargura. Particulari- zando, no caso da literatura brasileira que nos é próxima, in luenciando os nossos poetas “mensageiros” e contistas da “Cultura”, não termos apenas um Machado de Assis, Gregório de Matos, Castro Alves, Carlos Drummond de Andadre, Manuel Bandeira, Graça Aranha, um Graciliano Ramos, um nordestino José Lins do Rego ou mesmo um Jorge Amado ou João Ubaldo Ribeiro. Como se vê: precursores, modernistas e nordestinos não enchem os dedos de duas mãos cheias. Um outro caso que nos é próximo é o de Cuba, onde um dos poetas in luenciou a emergência das literaturas africanas de língua portuguesa, com o seu cântico à cubanidade, “songoro cosongo” ou a homenagem ao “negro bueno”. Re iro-me à literatura cubana, onde se destacam Mariatégui, Alejo Carpentier, Guillén e pouco mais.
Critério extra-literário
O critério numérico do 11/11, como se vê, é extra-literário, pois por mais nobre que seja a data, não pode sobreporse ao quali icativo da qualidade imorredoira que, tendencialmente, se compagina no clássico e na sua representatividade simbólica e textual que marcam escolas estéticas e atravessam épocas literárias, sendo igualmente disputado por uma multidão de leitores local e globalmente, conforme, aliás, reconhecem os organizadores da colecção.
No fundo, no fundo, independentemente de critérios outros utilizados, incluindo políticos, pois não vemos como António Jacinto representará mais na Mensagem do que Mário António, Viriato da Cruz ou mesmo Mário Pinto de Andrade. Ademais: mesmo na geração de 80, não vemos como Maimona é o mais representativo! Das análises que vimos fazendo ao longo dos anos, veri icámos que, dentro da nova vaga de autores angolanos emergida nos anos 80 ainda estará por decantar-se, em termos de representação simbólica, no tempo e no espaço, qual deles será o mais clássico entre os demais “novíssimos”, - paternalismos à parte. Então, qual é o critério objectivo que presidiu à presente recolha que pretendeu seleccionar 11 autores e acabou injustiçando autores dos mais representativos da literatura angolana? Convenhamos, não percebemos como os organizadores conseguiram introduzir um autor da nova vaga, em detrimento dos poetas “Mensageiros” já referenciados. Ou a designação terá sido bastante forçada, e, por arrastamento, terá forçado o resultado inal, que deixa a desejar, sendo uma recolha que não é su icientemente representativa do peso da literatura angolana no panorama cultural angolano e, quiçá, africano, sendo certo que o imaginário regional que buscam os poetas cantar e prosadores retratar é local, mas também universal – o conseguimento dessa dimensão humana é que torna este texto também um clássico da literatura, não sendo por isso negligenciável na hora de uma recolha como a que presidiu este breve e despretensioso discorrer. A (re)ler a gente se entende. Amén!