Para que serve o poeta? A fun ão pr tica da poesia
Identidade, contributos, ideologia: tentativa de reinterpretação
Oque faz o senhor, em que trabalha? Para que serve a poesia? São preguntas que oiço constantemente, em contextos tão distintos como a família ou a universidade, e que trazem consigo uma terceira pregunta que porventura por pudor ninguém formula como na realidade é: Poeta, para que serve o senhor? Não me resta outro remédio senão considerar o assunto pessoal e responder, sabendo de antemão que, independentemente da minha resposta, e do pouco apreço que costuma despertar em certo público, a poesia continuará a existir.
Começo a minha resposta assinalando primeiro que não sou, e não serei, um poeta social. Sou, apesar disso, um poeta e um cidadão consciente do que o rodeia e a quem não surpreende que em cidades como as que visitei no último mês, e noutras mais pací icas, o homem da rua, tanto como os intelectuais, se questione acerca do assunto que agora nos ocupa.
Quero referir-me ao questionamento sobre a função prática da poesia dizendo que a própria interrogação me parece uma armadilha: ao preguntar para que serve a poesia - que sempre existiu e jamais desaparecerá, que é necessária -, o problema não está na poesia mas no uso que, ao preguntar, se faz do verbo servir, assumindo que as coisas só têm utilidade se criarem ou produzirem algo susceptível de ser vendido ou comprado, ou se puderem ser usadas como ferramentas. Evidentemente, a poesia não é útil, não serve como um martelo, uma pistola ou uma chave de fendas. Também não vende nem compra nada e é por isso, talvez, que tem uma franca, mas falsa, aparência de inutilidade.
Face a esta armadilha alguns poetas icaram em di iculdades e chegaram a admitir, sem que seja necessário e por vezes com alguma vaidade, a inutilidade da poesia. Nada mais erróneo. A poesia é útil numa ordem de ideias distinta, não sei se mais alta, mas que existe: a poesia preenche, ou pelo menos assinala e explora, os vazios das nossas vidas sociais, e das nossas consciências individuais. Assim, serve efectivamente, não para contar coisas nem para produzir dinheiro, nem para fazer avançar a tecnologia, mas para revelarnos a nossa natureza de uma maneira diferente do quotidiano. Tal é a sua utilidade, e em nada é ideal nem igurada. É uma utilidade prática. Não considerála assim deve advertir-nos, não em relação a uma “carência” de sentido na poesia, mas a uma mecanização evidente da nossa vida social e individual.
A poesia é (entre muitas outras coisas) desde o início dos tempos, uma maneira de comunicarmos com nós mesmos e com a transcendência, e apenas tem variado na forma. Não duvido da ideia de que a poesia é inútil também seja antiga, mas aqui e agora, como noutras épocas da desesperança, menciona-se com mais insistência, e até com alguma má-fé, o que resulta, na verdade, de pedir à poesia coisas que não lhe cabe oferecer, ainda que por ve- zes o faça: a poesia não foi feita para acabar com as guerras, solucionar a fome, acabar com a pobreza, nem há razão para que o faça. No há motivo para exigir-lhe que solucione coisas que não provocou, e, não obstante, precisamente em tempos como este, a poesia, toda a poesia, e não apenas a social, é completamente necessária.
Mas acalmo-me e regresso, de novo, à questão sobre a utilidade da poesia, relatando um episódio recente. Em Bogotá, enquanto uma senhora me vendia umas empadas e me preguntava, falando de poesia de modo muito casual, para que serve isso, uma jovenzinha ao seu lado, que a ajudava a vender, respondeu-lhe, como que desculpando-se perante mim, que o rapaz faz poemas, que são para falar de amor, de coisas bonitas. Esta é uma resposta cheia de boas intenções, que agradeço e aprecio. Creio que a beleza é fundamental na poesia e pessoalmente não posso entender nada sem ela. No entanto, dizer que o poeta é útil porque faz coisas bonitas é pouco mais que transformá-lo num criador de objectos decorativos, e a função do poema é in initamente mais profunda, ainda que parta da necessidade de acrescentar um objecto belo à realidade. Assim, confrontamonos não apenas com uma pregunta armadilhada (para que serve a poesia) mas também a uma resposta igualmente ardilosa (para dizer coisas bonitas). Ambas a invalidam e fazem parecer um luxo desnecessário, um par de botões de punho. O poeta, creio, deve ter o cuidado de não cair em nenhuma destas dinâmicas. Escutada a bondosa resposta da ajudante da senhora que me vendia empadas, discuto agora a de alguns poetas jovens que dizem (ouvi-os eu) que no meio de tanta tristeza e violência a poesia é uma espécie de oásis, uma sorte de locus amoenus no qual nos refugiamos do que acontece. Para completar o cliché, não tardará que alguém os chame poetas de evasão e eles próprios não tardarão a falar de simbolismo, a poesia pura, e todas essas coisas ditas e repetidas.
Tudo é um mal entendido, não porque a sua poesia seja efectivamente um escape, mas porque não foi escrita (assim o espero) para evadir, para distrair o leitor da realidade que o rodeia.
O poema surgiu e está ali, no mundo, cumprindo a sua função que é a de ligar os homens à sua própria natureza, como se se encontrassem com ela pela primeira vez.
Mas, quem chamou poetas de evasão aos poetas que menciono? Os outros, os poetas “conscientes” e “responsáveis”, os que tomam as rédeas e fazem com que a poesia deixe de ser canto para ser uma arma carregada de futuro, humana e real. Aqui, companheiros, como poeta, a armadilha parece-me porventura maior: creio que a poesia não tem que dedicar-se a falar dos males humanos, ainda que possa fazê-lo. Digo agora que estou em completo desacordo com aqueles que defendem que a poesia deve falar de tal e tal coisa. A poesia, deve, apenas, ser poesia e nada mais. Falar do que tiver que falar, seja um tema social ou não.
O poema, mesmo o poema social, acontece como um acto íntimo, surge solitário. Assim, o poeta deve ser sincero, honesto e responsável com a poesia. O resto pode ou não aparecer. Digo-o porque não podemos esquecer que o poeta, enquanto ser social, é também um cidadão. O que o poeta diz ou não diz não deve afectar o que o cidadão faz.
Quer dizer que o facto que a contestação não apareça no poema não signi ica que não apareça nas ruas.
O poeta é um cidadão como todos e por esse motivo, também, deve assumir a sua responsabilidade social.
A utilidade prática do poema é iluminar recantos da nossa natureza ignorados ou obscurecidos, é assinalarmos que nem tudo tem que servir como serve um automóvel, porque nos mostra outra possibilidade (tão antiga como a primeira e talvez mais necessária) da utilidade.
A utilidade do poema é, também, tão extensa como as suas possibilidades: é capaz de falar de qualquer coisa, de expressar descontentamento assim como ódio, amor e desejo. A utilidade do poema- e repito-o, é uma utilidade prática- é servir como instrumento e encarnação de uma ideia/ emoção que não pode ser dita de outro modo.
A poesia, toda a poesia, é necessária. A arte é necessária, imprescindível. No entanto, a sua justi icação, encontra-se noutra ordem de ideias, enquanto arte. Signi ica, amigos, que os poetas, como os equilibristas, os padeiros e os arquitectos, servem para algo. Teremos conquistado o direito a existir.
Agulha (edição 03, Maio de 2012, fase II)
(O presente texto foi lido como parte de uma conferência sob o tema “Função prática da poesia”, no III Encontro Nacional de Jovens Escritores, Monterrey, Nuevo León, México, em Agosto de 2011)