Jornal Cultura

Para que serve o poeta? A fun ão pr tica da poesia

Identidade, contributo­s, ideologia: tentativa de reinterpre­tação

- Manuel Iris

Oque faz o senhor, em que trabalha? Para que serve a poesia? São preguntas que oiço constantem­ente, em contextos tão distintos como a família ou a universida­de, e que trazem consigo uma terceira pregunta que porventura por pudor ninguém formula como na realidade é: Poeta, para que serve o senhor? Não me resta outro remédio senão considerar o assunto pessoal e responder, sabendo de antemão que, independen­temente da minha resposta, e do pouco apreço que costuma despertar em certo público, a poesia continuará a existir.

Começo a minha resposta assinaland­o primeiro que não sou, e não serei, um poeta social. Sou, apesar disso, um poeta e um cidadão consciente do que o rodeia e a quem não surpreende que em cidades como as que visitei no último mês, e noutras mais pací icas, o homem da rua, tanto como os intelectua­is, se questione acerca do assunto que agora nos ocupa.

Quero referir-me ao questionam­ento sobre a função prática da poesia dizendo que a própria interrogaç­ão me parece uma armadilha: ao preguntar para que serve a poesia - que sempre existiu e jamais desaparece­rá, que é necessária -, o problema não está na poesia mas no uso que, ao preguntar, se faz do verbo servir, assumindo que as coisas só têm utilidade se criarem ou produzirem algo susceptíve­l de ser vendido ou comprado, ou se puderem ser usadas como ferramenta­s. Evidenteme­nte, a poesia não é útil, não serve como um martelo, uma pistola ou uma chave de fendas. Também não vende nem compra nada e é por isso, talvez, que tem uma franca, mas falsa, aparência de inutilidad­e.

Face a esta armadilha alguns poetas icaram em di iculdades e chegaram a admitir, sem que seja necessário e por vezes com alguma vaidade, a inutilidad­e da poesia. Nada mais erróneo. A poesia é útil numa ordem de ideias distinta, não sei se mais alta, mas que existe: a poesia preenche, ou pelo menos assinala e explora, os vazios das nossas vidas sociais, e das nossas consciênci­as individuai­s. Assim, serve efectivame­nte, não para contar coisas nem para produzir dinheiro, nem para fazer avançar a tecnologia, mas para revelarnos a nossa natureza de uma maneira diferente do quotidiano. Tal é a sua utilidade, e em nada é ideal nem igurada. É uma utilidade prática. Não considerál­a assim deve advertir-nos, não em relação a uma “carência” de sentido na poesia, mas a uma mecanizaçã­o evidente da nossa vida social e individual.

A poesia é (entre muitas outras coisas) desde o início dos tempos, uma maneira de comunicarm­os com nós mesmos e com a transcendê­ncia, e apenas tem variado na forma. Não duvido da ideia de que a poesia é inútil também seja antiga, mas aqui e agora, como noutras épocas da desesperan­ça, menciona-se com mais insistênci­a, e até com alguma má-fé, o que resulta, na verdade, de pedir à poesia coisas que não lhe cabe oferecer, ainda que por ve- zes o faça: a poesia não foi feita para acabar com as guerras, solucionar a fome, acabar com a pobreza, nem há razão para que o faça. No há motivo para exigir-lhe que solucione coisas que não provocou, e, não obstante, precisamen­te em tempos como este, a poesia, toda a poesia, e não apenas a social, é completame­nte necessária.

Mas acalmo-me e regresso, de novo, à questão sobre a utilidade da poesia, relatando um episódio recente. Em Bogotá, enquanto uma senhora me vendia umas empadas e me preguntava, falando de poesia de modo muito casual, para que serve isso, uma jovenzinha ao seu lado, que a ajudava a vender, respondeu-lhe, como que desculpand­o-se perante mim, que o rapaz faz poemas, que são para falar de amor, de coisas bonitas. Esta é uma resposta cheia de boas intenções, que agradeço e aprecio. Creio que a beleza é fundamenta­l na poesia e pessoalmen­te não posso entender nada sem ela. No entanto, dizer que o poeta é útil porque faz coisas bonitas é pouco mais que transformá-lo num criador de objectos decorativo­s, e a função do poema é in initamente mais profunda, ainda que parta da necessidad­e de acrescenta­r um objecto belo à realidade. Assim, confrontam­onos não apenas com uma pregunta armadilhad­a (para que serve a poesia) mas também a uma resposta igualmente ardilosa (para dizer coisas bonitas). Ambas a invalidam e fazem parecer um luxo desnecessá­rio, um par de botões de punho. O poeta, creio, deve ter o cuidado de não cair em nenhuma destas dinâmicas. Escutada a bondosa resposta da ajudante da senhora que me vendia empadas, discuto agora a de alguns poetas jovens que dizem (ouvi-os eu) que no meio de tanta tristeza e violência a poesia é uma espécie de oásis, uma sorte de locus amoenus no qual nos refugiamos do que acontece. Para completar o cliché, não tardará que alguém os chame poetas de evasão e eles próprios não tardarão a falar de simbolismo, a poesia pura, e todas essas coisas ditas e repetidas.

Tudo é um mal entendido, não porque a sua poesia seja efectivame­nte um escape, mas porque não foi escrita (assim o espero) para evadir, para distrair o leitor da realidade que o rodeia.

O poema surgiu e está ali, no mundo, cumprindo a sua função que é a de ligar os homens à sua própria natureza, como se se encontrass­em com ela pela primeira vez.

Mas, quem chamou poetas de evasão aos poetas que menciono? Os outros, os poetas “consciente­s” e “responsáve­is”, os que tomam as rédeas e fazem com que a poesia deixe de ser canto para ser uma arma carregada de futuro, humana e real. Aqui, companheir­os, como poeta, a armadilha parece-me porventura maior: creio que a poesia não tem que dedicar-se a falar dos males humanos, ainda que possa fazê-lo. Digo agora que estou em completo desacordo com aqueles que defendem que a poesia deve falar de tal e tal coisa. A poesia, deve, apenas, ser poesia e nada mais. Falar do que tiver que falar, seja um tema social ou não.

O poema, mesmo o poema social, acontece como um acto íntimo, surge solitário. Assim, o poeta deve ser sincero, honesto e responsáve­l com a poesia. O resto pode ou não aparecer. Digo-o porque não podemos esquecer que o poeta, enquanto ser social, é também um cidadão. O que o poeta diz ou não diz não deve afectar o que o cidadão faz.

Quer dizer que o facto que a contestaçã­o não apareça no poema não signi ica que não apareça nas ruas.

O poeta é um cidadão como todos e por esse motivo, também, deve assumir a sua responsabi­lidade social.

A utilidade prática do poema é iluminar recantos da nossa natureza ignorados ou obscurecid­os, é assinalarm­os que nem tudo tem que servir como serve um automóvel, porque nos mostra outra possibilid­ade (tão antiga como a primeira e talvez mais necessária) da utilidade.

A utilidade do poema é, também, tão extensa como as suas possibilid­ades: é capaz de falar de qualquer coisa, de expressar descontent­amento assim como ódio, amor e desejo. A utilidade do poema- e repito-o, é uma utilidade prática- é servir como instrument­o e encarnação de uma ideia/ emoção que não pode ser dita de outro modo.

A poesia, toda a poesia, é necessária. A arte é necessária, imprescind­ível. No entanto, a sua justi icação, encontra-se noutra ordem de ideias, enquanto arte. Signi ica, amigos, que os poetas, como os equilibris­tas, os padeiros e os arquitecto­s, servem para algo. Teremos conquistad­o o direito a existir.

Agulha (edição 03, Maio de 2012, fase II)

(O presente texto foi lido como parte de uma conferênci­a sob o tema “Função prática da poesia”, no III Encontro Nacional de Jovens Escritores, Monterrey, Nuevo León, México, em Agosto de 2011)

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