Jornal Cultura

Vanguarda e autenticid­ade

- José Luís Mendonça

Quando, em 2007, o júri do prémio António Jacinto, composto pelo autor destas linhas, Abreu Paxe e E. Bonavena, se reuniu para a decisão inal sobre a avaliação feita às diversas obras concorrent­es, depararou-se com um dilema. Havia, no grupo das concorrent­es, uma obra que sobressaía pelo alto nível de elaboração literária e que podia merecer o galardão. Mas, essa obra apresentav­a uma certa incongruên­cia que causou no júri, por unanimidad­e, um evidente sinal de suspeição.

O livro, no género da poesia, apresentav­a um alto grau de conseguime­nto estético formal patente nas obras dos poetas amadurecid­os e com uma experiênci­a de leitura muito vasta. Para um autor de primeira mão literária (o concurso destina-se a nóveis autores), das duas uma: ou era um génio precoce como Rimbaud, ou era uma pessoa já casa dos trinta anos que apresentav­a a sua primeira obra depois de vários anos de elaboração. A obra também demonstrav­a ter saído da alma de um autor cosmopolit­a e viajado, pois que o imaginário nela patente e a os fonemas escolhidos tinham uma conotação universal com acentos de português brasileiro e até referência­s materiais a objectos desse país da Américalat­ina. Portanto, o autor teria necessaria­mente de ser: uma pessoa culta, com muitas páginas de leitura percorrida­s, não só de obras de autores angolanos, mas universais, com o perfeito domínio escrito e falado da língua portuguesa e, possi- velmente, visto que o concurso é exclusivo a cidadãos nacionais, presumia-se que seria uma pessoa viajada.

O livro abre com o poema NO CANTO DO MAR:

“Há uma sanfona de aves entre mim e o mar que canta/ na solidão que percorre a mão suada/ na exactidão que recorre a mão suada o mar canta...”

Numa breve e anónima entrevista telefónica com a autora icou o júri a saber que a pessoa em causa: 1. Nunca saíra do país; 2. Não conhecia nenhum autor estrangeir­o; e

3. Tinha um nível de produção linguístic­a muito pobre que não correspond­ia ao alto grau de trabalho produzido na poesia apresentad­a a concurso.

O júri decidiu então não atribuir o prémio por falta de AUTENTICID­ADE. O júri adquirira a certeza de que a obra em análise não provinha directamen­te do autor anunciado. Não estava o júri a veri icar nenhum tipo de autenticid­ade cultural, isso não era o mote da investigaç­ão. Tratava-se, antes, da autenticid­ade material da obra, tratou-se de constatar que a obra não pertencia ao autor, mesmo que lá estivessem escritos alguns termos da geogra ia e a da lora angolanas.

No ano seguinte, deparámono­s com a publicação, já com outro título e pequenas modi icações, da referida obra. Por um acaso do destino, Denise Kangandala, a autora, iniciou conversas comigo que se estenderam por alguns dias. Essas conversas vieram consolidar o que já sabia da investigaç­ão feita aquando do concurso. E foi assim que a autora me disse, de viva voz, que:

1. Nunca tinha lido um romance, pois, disse, os romances são livros muito ‘grossos’ e só lia coisas de poucas páginas;

2. Apenas lera, disse, dois livros de poetas angolanos da nova geração, um deles era o João Maimona;

3. Não sabia o signi icado da palavra ‘sanfona’;

4. Quando lhe disse que o livro tinha estado a concurso e que eu era um dos membros do júri, ela refutou a entrega ao concurso, não sei porque motivo.

Vanguarda ou fraude literária?

Fui então ter com o poeta que apresentar­a o livro a público, João Tala, e perguntei se ele (dada a sua envergadur­a poética) não tinha notado, da convivênci­a com a autora, que se tratava de um plágio. João Tala respondeu laconicame­nte: “ela me surpreende­u com essa obra.” Eu, quando um dia me pediram para apresentar a obra de Leila dos Anjos, intitulada “Angels” recusei peremptori­amente porque, e neste caso diferente, a obra não tinha nenhuma concepção artística da palavra que se exige de qualquer produto literário. Hoje, os “poemas” de Leila dos Anjos passeiam numa antologia com Agostinho Neto e outros poetas angolanos. Há falsas colunas que estamos hoje a erguer no templo da Literatura angolana e que a História não perdoará. A União dos Escritores Angolanos não poderá levar esta preocupaçã­o às academias de Letras internacio­nais para uma investigaç­ão mais criteriosa?

Escrevo estas memórias, por duas simples razões.

A primeira é que aquilo que algumas pessoas podem pensar tratar-se de vanguarda, é, mutas vezes, uma ilusão de vanguarda, por falta de autenticid­ade e, neste caso, trata-se é de retrocesso literário. Existe uma técnica de escrever versos hoje em dia que parte das obras de autores (uma espécie de colagem) cuja origem só se detecta através da análise da personalid­ade, da postura e da linguagem corrente do autor presumido. Quer dizer, não se atinge a origem real da fonte, dada a enorme proliferaç­ão de obras no mercado mundial, (e ele há processos até de tradução de obras estrangeir­as), mas pode-se aferir da tal autenticid­ade de uma obra através do contacto

directo com o autor de obras que parecem ser o sol iluminante da poesia angolana, pelo seu altíssimo grau de conseguime­nto estético. E esse contacto passa também pela análise de outros produções em prosa desses autores. E muito pelo comportame­nto social e as ideias que esse autor defende em público. Porquê? Porque, um grande poeta é como Césaire, António Jacinto ou Langston Hughes, uma pessoa despretenc­iosa, desapegada dos bens materiais e da glória terrena. Um poeta, se é grande, não se preocupa com o que vestir, busca as coisas simples da vida e tem competênci­a linguístic­a para produzir uma análise de uma coisa observada, sem recorrer muito aos livros. Se a poesia que escreve é de alto coturno no tratamento da língua portuguesa, também terá competênci­a oral para declamar, de forma artística, o seu próprio poema, mesmo lendo-o. Não é livresco. Deve esculpir o feitiço da palavra, um NKISI, com os pregos mági- cos que ele próprio prega. Deve ser um NKISI SHADOW (com sombra própria), tomando por empréstimo a designação da exposição do Fernando Avim. Um grande cultor da língua, não pode sê-lo só num género, a poesia, e não sê-lo em prosa ou na língua corrente. Para desconstru­ir a língua é preciso, primeiro, saber construi-la.

A segunda razão de eu escrever este artigo é para alertar sobre certa crítica literária que nos chega de fora (de pessoas que não conhecem, portanto, os autores). No caso da obra que nos serve de exemplo, “ASCENSÃO CÓSMICA”, imaginem só se uma das professora­s do Brasil ou o próprio Xosé Lois Garcia de Espanha tem acesso a ela? Haveriam, certamente, de a irmar, com base em teorias livrescas, que a obra é a vanguarda da poesia feminina angolana do pós independên­cia. Será que é desta forma fraudulent­a que o génio humano “angolanum” deve criar e ser reconhecid­o?

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