Perfil de Alda Lara II
[Por razões editoriais, retomamos a publicação do Per il de Alda Lara, iniciada no nº45 deste jornal]
“Exílio” lisboeta
Alda Lara chegou a Lisboa depois de ter concluído o sexto ano do liceu. Terá, provavelmente, icado instalada em casa de familiares que, em Portugal, também se encontravam espalhados pelo território. Em Lisboa, em Coimbra ou na região do Minho. Esta era uma prática corrente, dado que não havia universidade em Angola. Na chamada Metrópole, ela conviveu com jovens que vinham dos quatro cantos da sua terra: o Emílio Leite, o seu primo Lúcio Lara, a Maria Alice, o Ângelo Dias, o Acácio Cruz, o António Neto e os irmãos Dáskalos. A Maria Alice, também estudante da Faculdade de Ciências, em Lisboa, dedica Alda o texto “In Memorian”, publicado no Jornal de Benguela, aquando da morte prematura desta sua amiga, em Outubro de 1949.
No seu percurso literário terá sido relevante a presença de poetas angolanos, principalmente os que provinham do mesmo “triângulo escolar” (MARGARIDO: 1962), como Alexandre Dáskalos, Aires da Almeida Santos e outros com quem directa ou indirectamente se foi cruzando, como António Jacinto, a quem dedica o poema “Cais”, em 1953. Para além destes, não podemos deixar de sublinhar a importância de duas iguras, no nosso entender, determinantes na sua trajectória de vida: Ernesto Lara (Filho) e Orlando de Albuquerque.
Orlando viera de Moçambique e pertencia a um grupo de que faziam parte João Dias, Victor Matos e Sá ou Alberto Lacerda. Essa proximidade terá permitido a Alda um maior contacto com a literatura negra e o Neo-realismo, de que alguns dos elementos eram simpatizantes. A João Dias, por exemplo, dedica o poema “Rumo”, em 1949, e também com esta composição poética, em 1951, evoca a sua memória.
Quando Alda Lara ingressou na Faculdade de Medicina, em Lisboa, em 1948, o seu grande objectivo era o de tirar um curso que lhe pudesse ser útil em Angola. Numa carta enviada ao irmão e publicada no jornal O Lobito, em Fevereiro de 1971, assinalando a data da sua morte, sob o título “Alda Lara - 9 anos de saudade”, sublinha que “não tinha ideias nenhumas sobre um possível casamento”, que este terá “acontecido quase por acaso”, mas que lhe trouxe uma enorme felicidade. Nessa missiva, descreve Orlando como suporte, uma trave mestra na sua vida.
Em Lisboa, sempre se sentiu “exilada”, os anos que viveu em Portugal privaram-na dos seres e dos seus lugares de afecto. Orlando era mais velho, nascido em 1925. Em documentos de imprensa da época aparece sublinhado o grande amor que os unia, que levava Orlando a pô-la em primeiro plano ou, fazendo uso das suas próprias palavras, na carta acima referenciada, “é costume pelo casamento as mulheres receberem a nacionalidade dos maridos” mas, no seu caso, “foi o Orlando que se tornou angolano pelo casamento”.
No ano em que Alda Lara entra na universidade, Ernesto chega a Portugal para tirar o Curso de Regente Agrícola, que conclui na Escola Nacional de Agricultura, em Coimbra, em 1952. Orlando também era estudante de Medicina em Coimbra. A maioria dos poemas de Alda Lara datados até 1952 aparecem como produção poética do tempo em que viveu em Lisboa. No entanto, o texto “Primavera”, de 1954, surge com a indicação de que tenha sido escrito em Coimbra.
Alda Lara casa com Orlando de Albuquerque no dia 12 de Setembro de 1953, na igreja paroquial de S. Vicente de Fora, em Lisboa. Tinha então 23anos. Em 1954, Orlando, agora casado, conclui o curso de Medicina na “cidade dos estudantes” e, nessa mesma altura, ela termina o terceiro ano do curso. Esse facto é noticiado num im de página do Jornal de Benguela , sob o título “Vida Universitária”.
Apesar da sua juventude, a postura de Alda perante a vida e a consciência que tinha dos problemas da sociedade em que vivia e em cuja resolução se empenhava rapidamente a levaram a militar nos movimentos estudantis, onde terá adquirido um conhecimento mais aprofundado da literatura dos séculos XIX e XX e das movimentações socioculturais da época.
No inal da década de 1940 e na década de 1950, as leituras literárias dos estudantes universitários de Lisboa e Coimbra parecem ter sido vastas e diversi icadas. Segundo Pires Laranjeira (1995), desde os livros de Lenine, Marx, Engels ou Garaudy, passando pelas publicações da UNESCO, ou as Édi
tons Sociales, pelas obras de Torga, Nemésio ou Pascoaes, circulavam, ainda, revistas como a Seara Nova ou a Vértice.
As preferências iam para Gorki, para os brasileiros Jorge Amado, José Lins do Rego, Érico Veríssimo, Manuel Bandeira ou Drummond de Andrade. Entre os portugueses, além dos já citados, faziam ainda parte da panóplia os nomes de Soeiro Pereira Gomes, Alves Redol, Fernando Namora e José Gomes Ferreira, entre outros, bem como os poetas do Novo Cancioneiro. Dos americanos, liase John Steinbeck, Hemingway, Whitman ou outros. Entre os franceses, as escolhas parecem ter recaído sobre Éluard, Prévert, Aragon, ligados ao surrealismo e à luta anti-fascista.
Portugal não tinha entrado na Segunda Guerra Mundial. Era um país fora do tempo. Havia, principalmente da parte dos jovens, uma necessidade de se entrosarem com o seu tempo. Por um lado, os neo-realistas buscavam uma nova literatura que fosse contraponto à estagnação que o país então vivia. Os africanos, por outro, procuravam a irmação de identidade.
Além disso, a Présence Africaine, fundada em 1947, pretendia ser um veículo do “novo humanismo” defendido por intelectuais negros, a maioria a viver em França e que, tendo por base os valores tradicionais das suas nações, não se sentiam “assimilados” pela cultura ocidental. Estas ideias circulavam, em Portugal como nas antigas colónias portuguesas. Sublinhamos o facto curioso de, em 1956, oJornal de Angola, numa edição de Agosto, apresentar, no mesmo número, uma crónica de Ernesto Lara (Filho), um artigo de Alda Lara e uma entrevista a Senghor.
Alda sempre revelou, durante a sua permanência em Portugal, uma profunda preocupação com os problemas
No seu percurso literário terá sido relevante a presença de poetas angolanos, principalmente os que provinham do mesmo “triângulo escolar” (MARGARIDO: 1962), como Alexandre Dáskalos, Aires da Almeida Santos e outros com quem directa ou indirectamente se foi cruzando, como António Jacinto,
humanitários e uma percepção clara da situação que se vivia nas ex-colónias portuguesas, principalmente em Angola. O seu desejo era que a sua terra fosse um lugar para todos, brancos, mestiços e negros. Um lugar onde homens e mulheres pudessem cantar em uníssono o mesmo canto, o da liberdade. Ela estava consciente de que isso só seria possível com ousadia, com atrevimento e através da emancipação do Homem, da Mulher, do Ser Africano. Em excertos de páginas do seu diário, publicados na imprensa da época, temos também nota de algumas das suas apreensões. A generosidade e o idealismo sempre a acompanharam. Foi uma “voz da utopia” mas, ao mesmo tempo, uma mulher de acção concreta.
O Boletim Mensagem, por exemplo, sinaliza a sua intervenção cultural. Logo no número inaugural, em Julho de 1948, surge a sua palestra “Os colonizadores do século XX” e o emblemático poema “Regresso”. Nesse mesmo número, pode-se ler um comentário a essa palestra, na rubrica “Noticiário”, dos Serviços de Cultura, onde lhe são reconhecidos o talento, a clareza, a inteligência, a irmeza, a lucidez e a capacidade de auto-crítica. Alda Lara tinha então apenas 18 anos.
Ainda nesse noticiário, Alda Lara e Geraldo Bessa Victor são referidos como dois “recitadores consagrados da Casa”. Também na Mensagem Angola
na, uma edição da Secção de Angola da Casa dos Estudantes do Império, em Outubro de 1948, ela é mencionada como colaboradora. Em 1952, aparece igualmente, na referida publicação, uma nota a propósito de um serão cultural e recreativo, promovido pelo Departamento de Cultura, onde é feita alusão a um recital de poesia de Alda Lara muito aplaudido pelo público.
A imprensa da época noticia ainda a existência de diversos artigos como “O Pro issionalismo da Mulher no Sul de Angola”, publicado no Jornal Magazine
da Mulher, em Lisboa, em 1950, de que já demos conhecimento na edição nº44 deste jornal, ou “Acerca de Poesia Angolana”, no Jornal de Benguela, no mesmo ano. Estes textos revelam não apenas a escritora, mas a mulher de um determinado tempo, um ser humano de causas, com clara intervenção social, para quem a escrita se tornou uma forma de existência, sob a vigência da opressão colonial, numa vivência progressivamente consciencializada dos direitos de um povo, e de que resultaria a luta de libertação nacional em Angola.
Há registo de que tenha proferido várias conferências, entre as quais destacamos “Acerca do auxílio médico às missões”, em 1952, uma outra sobre Katherine Mans ield, autora Neo-ze- landesa que Alda Lara apreciava, sendo o Diário desta escritora apontado por Orlando de Albuquerque como um dos livros de cabeceira de Alda, e ainda “Salvemos a África em Cristo”. Em 1950, o Jornal Magazine da Mu
lher, num artigo intitulado “Na Casa dos Estudantes do Império – uma recepção aos estudantes de Cabo Verde” é feita referência a um serão de música e poesia, realizado em Setembro desse mesmo ano, no qual Aguinaldo Fonseca fez “uma vibrante palestra” sobre Pedro Corsino de Azevedo e Alda Lara leu poemas deste “infeliz e saudoso poeta”.
Durante o “exílio” lisboeta, Alda deu vários recitais em Coimbra e em Lisboa, divulgando obras de poetas africanos ou outros ainda pouco lidos em Portugal. A este propósito, referimos o seu Recital de Poesia, organizado pela delegação de Coimbra da Casa dos Estudantes do Império, na União dos Grémios de Lojistas de Coimbra, em Maio de 1953. No programa do referido recital encontramos, entre os poetas seleccionados, na primeira parte, Guerra Junqueiro ou García Lorca e na segunda, dedicada à poesia negra, António Jacinto, Orlando de Albuquerque, Noémia de Sousa, António Nunes e Francisco José Tenreiro. Além destes, Alda Lara recitou ainda “Afrique”, de David Diop, com tradução sua, Langston Hughes, Andrés E.Blanco, Nicolás Guillen ou Regino Pedroso.
Ainda neste contexto, José Fialho, médico e poeta, publica no jornal ABC, em 1962, um artigo intitulado “Regresso Eterno”, que inicia com a estrofe inal do poema “Regresso”, de Alda Lara. Fialho exalta, neste texto, a forma como a ouviu declamar poemas seus, de Orlando e de outros poetas, um momento que recorda, depois da sua morte, como “um dos mais altos e emocionados” que viveu. Também Ernesto Lara (Filho) numa das suas crónicas na imprensa em 1961, a propósito da morte do poeta Alexandre Dáskalos, com o título “Companheiros”, sublinha o facto de a irmã tantas vezes o ter recitado “apaixonadamente”.
Em 1962, na sequência da sua morte, a revista Mensagem assinala com “profunda consternação” o desaparecimento da “poetisa da terra das acácias rubras, a declamadora da «Poesia Negra», a conferencista estudante”. Nesse mesmo ano, também o jornal
ABC, Diário de Angola, sob o título “Per il Alda Lara”, artigo com que iniciámos este testemunho, dá conta desse seu envolvimento cultural e social. Em carta ao irmão, publicada na imprensa, ela própria a irma ter pertencido “a todas as organizações católicas do meio universitário” e dirigido uma secção cultural na Faculdade de Medicina, no ano de 1952.
Ernesto, numa outra carta igualmente publicada no jornal O Lobito, em 1971, a irma que ela deixou, na sua passagem por Portugal, uma marca indelével, contando que numa visita que fez ao Hospital de Santa Maria, em Lisboa, depois da sua morte, muitos médicos e outras pessoas se lembravam dela e o acarinharam por ser irmão de quem era.
Depois de ter iniciado o curso de Medicina em Lisboa, Alda Lara mudou-se para Coimbra, tendo aí prosseguido os estudos. Algum tempo depois, contingências da vida pro issional do marido obrigam-na a voltar a Lisboa, mas é na “cidade dos estudantes” que conclui o curso, em 1959 (facto noticiado no Jor
nal de Benguela), vencendo com “brilho as treze «cadeiras» inais da sua formatura”, e com a apresentação de uma tese de licenciatura sobre psiquiatria infantil. Nessa altura já é mãe de quatro ilhos. Esse trabalho acaba por lhe valer um convite para ir para Paris fazer uma especialização que lhe daria, depois, a possibilidade de trabalhar nessa área, em Lisboa. Recusa. Mas não desiste de sonhar. Acaba por trocar uma vida estável em Paris por uma Angola já em con lito armado. Volta para a sua terra natal. Instala-se em Cambambe onde Orlando já se encontrava. Desta vez o ansiado regresso foi para sempre. Morreu poucos meses depois de ali ter chegado.
Em Lisboa, sempre se sentiu “exilada”, os anos que viveu em Portugal privaramna dos seres e dos seus lugares de afecto.