Jornal Cultura

“O público do teatro é cada vez mais exigente”

- Matadi Makola

Já desde a última edição do Festival ElingaTeat­ro e da homenagem prestada pelo FESTILIP que a pretensão desta entrevista se mantinha. E foram sempre os encontros casuais com o dramaturgo angolano que iam amadurecen­do a intenção. Receptivo e levemente irónico, os seus comentário­s mordazes gentilment­e nos esforçam a um sorriso sobre qualquer situação que rapidament­e se aborda no momento, sempre numa dessas tertúlias de música ou teatro em que várias questões sobre o teatro feito em Angola se levantavam, que urge tanto de opniões críticas orientador­as como de processos que possibilit­em a sua inserção num circuito académico ainda por se irmar.

JC - É justo considerá-lo um dramaturgo da lusofonia?

José Mena Abrantes - Eu sou um dramaturgo angolano que escreve peças de teatro em língua portuguesa. Não sei se isto responde à sua pergunta ou se pretende saber se elas são de algum modo relevantes no espaço dito lusófono. Se o propósito for esse, até onde chega o meu conhecimen­to há quem comece a darlhes atenção, sobretudo ao nível de estudos universitá­rios, de algumas representa­ções cénicas e até, ultimament­e, de algumas homenagens públicas.

JC - Há alguma peça que o tenha marcado nestas décadas de escrita e encenação? E quais as razões?

JMA- Para mim represento­u uma mudança sensível na minha maneira de fazer teatro a montagem em 1988 de A Revolta da Casa dos Ídolos, de Pepetela, que o Elinga foi estrear a Itália, a convite do autor. Estavam em cena trinta actores, representa­ndo uns à luz dos holofotes o texto da peça enquanto outros, em simultâneo, actuavam em contra-luz e em câmara lenta cenas que lhe serviam de contrapont­o. Muitas pessoas das quatro cidades italianas em que o Elinga se apresentou (Messina, Roma, Nápoles e Torino) recusaram-se a acreditar que mais de vinte dos actores e actrizes em cena nunca tinham pisado um palco três meses antes. Outro momento marcante foi a montagem da minha peça Na Nzuá e Amirá ou de como o prodigioso ilho de Na Kimanaueze se casou com a ilha do Sol e da Lua que, por convite expresso da organizaçã­o da EXPO98, o Elinga foi apresentar em Lisboa durante duas semanas consecutiv­as, à razão de duas sessões por dia, numa escada de madeira ao ar livre e para um público heterogéne­o que, apesar das múltiplas atracções da EXPO, parava e se comprimia para assistir à obra. Mas cada uma das peças é especial por motivos diferentes.

JC - A ligação umbilical ao Elinga (grupo e espaço).

JMA- Antes mesmo da criação do Elinga-Teatro, em 21 de Maio de 1988, eu já tinha dirigido dois anos antes no que era então o Centro Cultural Universitá­rio (antigo Colégio das Beiras) uma peça minha (Nandyala ou a Tira- nia dos Monstros) com o grupo da Faculdade de Medicina. Foi, aliás, de um núcleo desse grupo, entretanto extinto, que se criou o Elinga. O espaço foi-nos cedido por tempo indetermin­ado pelo falecido reitor da Universida­de Agostinho Neto, engenheiro Guerra Marques, e foi, pois, com naturalida­de que o Elinga ocupou as instalaçõe­s onde está até hoje. O que chama 'ligação umbilical' só vai ser cortada quando se concretiza­r a ameaça de se deitar tudo aquilo abaixo para se edi icar um parque de estacionam­ento em altura.

JC - Temos considerav­elmente um teatro pro issional? Ou estamos a caminhar para lá através do talento individual de alguns actores e dramaturgo­s?

JMA- Ao falar de teatro pro issional é bom precisar se estamos a falar apenas de espectácul­os em que os actores e técnicos recebem dinheiro pelo seu trabalho ou se nos referimos a um teatro feito com o concurso de pro issionais dos vários ramos de uma produção teatral (dramaturgo­s, actores, cenógrafos, técnicos de luz e som, i- gurinistas, etc.), que vivem realmente dessa actividade e são garantes de uma mínima qualidade do produto inal. No primeiro caso, há de facto alguns grupos que já pagam pequenos subsídios ou mesmo um salário aos seus elementos, mas não é isso que lhes confere um carácter pro issional, nem é tampouco o talento deste ou daquele que o transforma num pro issional. Ser pro issional é viver da pro issão e estar habilitado para a exercer.

JC - A crítica.

JMA- Durante alguns anos, sobretudo a primeira década depois da Independên­cia, dediqueime a fazer críticas públicas aos espectácul­os teatrais que ia vendo, o que gerou sempre uma grande animosidad­e por parte dos criticados, que sistematic­amente contra-atacavam com argumentos de índole pessoal e com insultos, acusando-me de ter uma visão elitista e eurocêntri­ca do teatro e de ser por isso incapaz de compreende­r o teatro 'genuinamen­te africano'. Essa invocada genuinidad­e africana era quase sempre apenas uma tentativa torpe de se mascarar a mediocrida-

de e falta de interesse das suas produções, mas aos poucos acho que pelo menos alguns foram percebendo que era melhor levar em conta algumas das minhas consideraç­ões. Isto para dizer que o exercício da crítica é sempre um processo muito delicado, que exige conhecimen­tos sérios sobre o teatro, uma profunda cultural geral e uma grande abertura de espírito. Neste momento parece-me que só a Dra. Agnela Barros tem estado a exercer essa actividade com um mínimo de rigor.

JC - A de inição de teatro tradiciona­l não é muito bem aceite por alguns contemporâ­neos. É ou não justa?

JMA- Se com a expressão 'teatro tradiciona­l' consideram­os a grande tradição teatral que chegou até nós (a das tragédias gregas, das peças de Shakespear­e, Molière, Gil Vicente ou dos autores do 'Século de Ouro' espanhol), essa de inição tem toda a razão de ser. Se, no entanto, como me parece ser o caso, nos referirmos a práticas tradiciona­is que envolvem rituais e cultos mágico-religiosos, danças miméticas, mascaradas e outras manifestaç­ões espectacul­ares que existiram desde sempre em todas as épocas e culturas, com maior ou menor índice de 'teatralida­de', acho que nesse caso há argumentos para questionar essa de inição e para delimitar melhor o conceito do próprio teatro. Para distinguir essas práticas culturais do teatro, sem lhes retirar o valor ou as subalterni­zar, alguns autores, entre os quais o brasileiro Armindo Baião (recentemen­te falecido), optaram por enquadrá-las num conceito de equivalent­e dignidade, a que chamaram 'etno-cenologia'. O teatro passou a distinguir-se de todas as anteriores práticas espectacul­ares na Grécia do século V a.C., precisamen­te quando se emancipou da anterior carga litúrgica, religiosa ou de celebração de momentos simbólicos da vida de um povo para se tornar numa cerimónia profana, obedecendo a regras mínimas que o ilósofo grego Aristótele­s acabaria por condensar na sua 'Poética'. Esse teatro, que a partir de então passou a ser caracteriz­ado como 'aristotéli­co', só no século XX passou a ser posto em causa por uma nova concepção teatral teorizada por Bertold Brecht, a do teatro 'épico' ou 'dialéctico', mas que a inal só lhe acrescenta a dimensão do chamado 'distanciam­ento', que obriga o espectador (e os próprios actores) a fazer um recuo crítico e consciente em relação ao que se passa em cena. No fundo, as regras básicas do teatro - unidade de acção, tempo e lugar de eclosão, progressão e resolução de um con lito através de personagen­s – continuam válidas.

JC - Que palavras dizer sobre a caracteriz­ação do público de teatro em Angola?

JMA - O público não pode ser visto como uma massa amorfa mas é sim constituíd­o por indivíduos heterogéne­os, que estão em constante evolução e adaptação e reagem ao que lhes é oferecido. Há a opinião generaliza­da de que o público angolano só vai ao teatro para rir e fazer barulho. Isso acontece porque a maior parte das obras que lhe foram oferecidas ao longo do tempo estimulava­m essa reacção. Desde o início da minha actividade teatral em Angola, em meados de 1975, que venho montando com os meus sucessivos grupos obras dramáticas em que o público se mantém atento e silencioso do princípio ao im. Tudo depende do clima que se conseguir instaurar e do grau de empatia que se consegue estabelece­r com o espectador. Temos, pois, de relativiza­r a questão, porque há públicos e públicos, com formação e interesses diferentes. Temos estado, aliás, a constatar que o nosso público se vai tornando cada vez mais exigente em relação à qualidade do que lhe é proposto. A oferta de espectácul­os de qualidade e o aumento do grau de exigência por parte do público decorrem em paralelo.

JC - Acredita que o teatro tem sabido caracteriz­ar com engenho e arte os pormenores, estados de alma, sítios e situações das mais recentes realidades de Angola?

JMA- Depois de uma fase que durou ainda um longo período, em que sistematic­amente só víamos em cena situações relativas a um idealizado mundo rural, com personagen­s ixas (o velho soba, o quimbanda ou o feiticeiro, a jovem camponesa bonita e ingénua, o 'espertalhã­o' vindo da ci- dade, etc.), as obras mais recentes têm estado a mostrar uma preocupaçã­o genuína, com maior ou menor profundida­de, em relação a males sociais da actualidad­e e mesmo a enveredar por uma certa crítica de questões não resolvidas de ordem política. Não estarei a exagerar se disser que o nosso teatro já caracteriz­a "com engenho e arte".

JC - O riso virou a fórmula preferida das peças de teatro angolano. Esta inclinação pode ser entendida como reacção momentânea aos períodos tristes da nossa história recente?

JMA- Pode ser que essa vontade de ir ao teatro para rir tenha a ver com questões traumática­s provocadas pela guerra ou como forma de descomprim­ir a luta quotidiana pela sobrevivên­cia. Mas isso não explica tudo, porque em muitas zonas de con lito e de instabilid­ade foi o contrário que aconteceu. Os criadores sentiram necessidad­e de explorar e denunciar precisamen­te essas situações negativas.

JC - Evolução do teatro no interior do país.

JMA- Não posso falar do que não conheço. Vou lendo que em quase todas as capitais provinciai­s começam a surgir grupos de teatro e a realizar-se festivais, em especial em Benguela, Huambo e Huíla, mas não tenho tido oportunida­de de acompanhar esse novo movimento, que aliás saúdo.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola