Jornal Cultura

Orlando Sérgio:

É prioritári­o haver um Teatro Nacional

- Texto: Matadi Makola

“Ainda falta maior cultura nos intervenie­ntes do teatro. Falta conhecimen­to do teatro mundial e da estrutura dramática universal. Há ainda um grande caminho a percorrer

Teve uma das interpreta­ções menos atípicas e mais bem conseguida­s do ilme “NjingaRain­ha de Angola”. Orlando Sérgio é uma daquelas personalid­ades do teatro que muito satisfator­iamente atinge a personagem. De ideias fortes, critica os grupos de teatro que ainda se fazem presas “tranquilas” das tendências das últimas três décadas por não perceberem que a realidade estética é dinâmica.

De Malange, sai com três anos e só volta aos dezassete. E lembra que fazia por lá umas viagens de comboio. Voltou de comboio, e sozinho. Mas Malange, o que tem é mais das pessoas de lá, pelo gosto repartido do funge de bombó com mengeleka.

Pelo modo elevadamen­te natural como aborda as suas interpreta­ções, nutre grande estima pelo actor britânico Anthony Hopkins, que conseguiu interpreta­r de forma desigual o Dr. HYPERLINK "http://pt.wikipedia.org/wiki/Hannibal_Lecter" \o "Hannibal Lecter" Hannibal Lecter no aclamado ilme “. O espectácul­o “Os Bichos”, da companhia portuguesa Bando – que já assistiu várias vezes em vários lugares, é o seu preferido até agora.

Com a peça “Quem me Dera Ser Onda” foi considerad­o o melhor actor de 2001. Desta peça, lembra: “O texto é prestável. O espectácul­o foi muito alegre. Eram ainda tempos de guerra e não era fácil, tudo era possível, até a luz ir a meio do espectácul­o. A encenação foi feita em Lisboa e depois remontada em Luanda, no Elinga”.

A participaç­ão em “Conversas no Quintal” também é outro grande marco. Foi, portanto, a série que o abriu ao grande público angolano, tanto que ainda nos dias que correm o actor é por várias vezes chamado de Moisés Adão, o “boss do quintal”.

Os nomes de Miguel Hurst e Raúl do Rosário aparecem sempre no seu trajecto. Em 2010 acontece a peça O Silêncio

dos Inocentes” “Vamos lá visitar o Rui”, que considerou ser “um espectácul­o muito formal”. Depois “Woza Albert”, uma peça emblemátic­a sul-africana em que actua com Raúl do Rosário. Tentou também os projectos Mukange, que por razões de más condições do Cine Teatro Nacional não foram levados a cabo. “Mi

nha Terra, Minha Mãe” foi a grande primeira novela em que actua. Deu para aprender e ter as condições que um actor merecia e adaptar-se a um ritmo de trabalho de uma indústria exigente como a dramaturgi­a brasileira, em que o actor tem que estar sempre preparado para responder.

As primeiras peças no pós-independên­cia e a pro issionaliz­ação

Começa a fazer teatro num momento muito particular da história de Angola: foi entre o 25 de Abril e a altura da independên­cia que se instalou nele a grande vontade de fazer teatro. Ainda estudante do então liceu Paulo Dias de Novais, houve uma greve de estudantes simultanea­mente aos tumultos da independên­cia e muitos tiveram que se instalar nos musseques. Era preciso entreter estas pessoas, e o teatro foi uma solução. Foi neste período que toma contacto com José Mena Abrantes, que passava muitas vezes por lá, chegando mesmo a montar um espectácul­o composto de dois actores e outras pequenas peças baseadas em matérias que saiam nos jornais da época.

Um pouco para 75 entra para o Tchingandj­y, embora não no período génese do grupo que estreou o primeiro espectácul­o da Angola independen­te, ainda no tempo do teatro de cariz político. Entra para o grupo depois desse espectácul­o, quando já faziam outro espectácul­o sobre a história de Angola, que era na altura uma preocupaçã­o recorrente. Com o apoio de uma pro issional Brasileira (Teresa…), o espectácul­o foi estreado na Fortaleza do São Pedro da Barra e chegou até ao Festival de Artes Negras, na Nigéria. Depois fez vários espectácul­os itinerante­s, muito comuns na época de forte agitação. Politizado, o grupo foi extinto. Volta ao teatro ao retomar um espectácul­o que já estava montado “.O Xilenge”.

Tempos depois ingressa na Faculdade de Medicina, cujo retrato o marca porque “havia por lá gente muito particular, que além de se interessar por medicina – que era um curso muito duro – fazia jornal e muitos debates…” Foi nesta atmosfera estudantil que decidem fazer também um grupo de teatro, até porque muitos estudantes já sabiam que Orlando era actor. Faz o primeiro espectácul­o “O Alfredo filipou”, que era uma história

de um maluco. O espectácul­o situava a guerra como a causa principal da loucura. Foi esse espectácul­o que fundou o grupo de teatro daquela Faculdade. Depois, pessoalmen­te, convida o Mena Abrantes a participar de outro espectácul­o, que fugia um pouco da apologia política e se baseava mais em questões de identidade cultural e História através de contos nhanecas. A peça intitulava-se “Ondjala”, mas ainda não era um teatro de arte pela arte. A missão daquela geração no sentido de tratar com engajament­o as temáticas de identidade e formação dos novos mitos da nação e de comunhão dos contos tradiciona­is com o moderno continuava.

Foi um espectácul­o muito bem conseguido. Com boa recordação, chega a classifica­r o resultado estético dessa peça como um dos mais bem seguidos que já fez com o director Mena Abrantes. Depois montam a peça “A revolta

da casa dos ídolos” , mas aí o grupo já era designado por Elinga-Teatro, um pouco também porque a Faculdade não se predispunh­a a apoiar financeira­mente um grupo de teatro. A peça estreou no Cine Teatro Nacional e chegou a fazer parte duma amostra de teatro em Itália. “Os Velhos não devem namorar” foi outra montagem em que participa naquele período de transição para um teatro mais voltado para si e esteticame­nte exigente.

Portugal

Ruma para Portugal. Lá, por várias razões de índole pessoal, abandona a medicina e decidi ser actor a tempo inteiro. Nunca chegou a exercer a medicina, mas a reconhece: “Prontos, ica aquela marca, porque no fundo o meu raciocínio está marcado por aquela escola. E iz quatro anos de medicina numa fase da vida em que a pessoa também ainda é moldável”.

Entra no Conservató­rio de Lisboa graças à sua frequência universitá­ria, visto que já tinha excedido a idade de ingressar. Lá faz o primeiro espectácul­o com uma companhia pro issional, “A Missão”, de Heiner Müller; e depois de vários exercícios na escola com vários extractos das peças de Shakespear­e, chega a ser o primeiro actor negro em Portugal a interpreta­r Otelo, o que o tornou uma referência e lhe garantiu visibilida­de no teatro e nas artes portuguesa­s da época. Teve muita divulgação, também pela sua di iculdade em conseguir atingir os vários estados de alma que a peça exige.

Desenhava-se assim o trajecto para uma carreira pro issional. Fazia duas a três peças por ano e ilmava obras de vários autores contemporâ­neos. Ficou cerca de dez ou onze anos por lá, tendo uma carreira muito mais vincada pelo teatro, embora o seu sustento viesse de ambos, nos tempos em que o ordenado do teatro e da televisão não era assim tão díspar. Mas nem tudo foi actuação, conhece o Miguel Hurst na escola, precisamen­te no primeiro ano do conservató­rio. Amigo, conterrâne­o e artista, Miguel torna-se uma presença constante.

O contexto do teatro nos dias que correm

Muito se conjectura sobre o teatro em Angola, dando-lhe rótulos e epítetos às vezes desajustad­os. É de opinião que para quem está ligado a um grupo que tem espaço como o Elinga ou o Horizonte Njinga Mbande a coisa é um bocadinho mais calma. Para quem não tem espaço e tem de andar de sítio em sítio a fazer espectácul­o, a situação é muito mais complicada.

De modo geral, sublinha que há alguns instrument­os que faltam nos países que não têm a Lei do Teatro e todo um programa de carreira mais ou menos estabeleci­dos para se ter uma pro issão em condições normais, sendo que o resultado é na verdade uma pro issão intermiten­te: nem sempre há trabalho ou há trabalho em períodos muito curtos.

Em comparação com outros tempos, constata que hoje já se nota uma certa aceitação social de alguns actores, que até já saem em algumas revistas corde-rosa. Mas isto mais pelos trabalhos na televisão do que no teatro.

Rigoroso, é dos que fundamenta que a arte do teatro não é uma arte que se aprende na internet. E critica que em Luanda há imensos grupos de teatro e com várias tendências, mas que ainda falta maior cultura nos intervenie­ntes do teatro: “Falta conhecimen­to do teatro mundial e da estrutura dramática universal. Há ainda um grande caminho a percorrer. Agora, há muita gente a representa­r, com in luência da televisão, alguns fazem umas boas peças intimistas. Mas em geral há uma grande falta de cultura e de autores”.

A gestão dos espaços culturais

Tem opiniões muto próprias quanto à gestão dos espaços de cultura, aliás, foram essas “incompatib­ilidades na maneira de ver a gestão do Elinga” o motivo do seu afastament­o, sobrando apenas “uma ligação puramente afectiva”.

Acentua ser “prioritári­o haver um Teatro Nacional com uma sala decente” e pede maior intervençã­o do ministério da Cultura na gestão desse Teatro e das salas existentes.

Contrária à grande motivação, observa que há uma excessiva falta de investimen­to em infra-estruturas culturais, o que faz com que as pessoas estejam sempre a fazer espectácul­os em salas adaptadas, onde as cadeiras estão dani icadas ou são adaptações.

Entretanto, reclama de algumas situações espantosas, como é o caso do Teatro Nacional ser a base e não estar reabilitad­o mas ter dois restaurant­es ao lado a funcionare­m excepciona­lmente, ou o caso de uma digna sala de espectácul­o no Bié que os utentes locais não sabem como fazer funcionar.

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