A falácia da impessoalidade da obra literária
O jornal Cultura começa a dar os seus frutos no que toca a colocar sobre a mesa do debate certas questões mais candentes que envolvem a produção da literatura nacional e cuja discussão já esteve, num passado que esperamos morto e bem enterrado, eivada de postulados extraliterários. Visto que a teoria da literatura objectiva-se a estudar a obra, o autor, o leitor e todo o processo que envolve as obras literárias, é falsa a ideia de que qualquer análise que extravase o texto seja inválida ou incorrecta. Isso, como veremos adiante, não passa de uma falácia. Pois, pelos frutos, se conhece a árvore e vice-versa.
Diz João Tala, na sua resposta que “a propósito do meu artigo publicado no Vida Cultural (VC) intitulado Fundamentos de uma Estreia, me ative à obra e não à pessoa.” E diz
também que “a apreciação literária que escrevi para o VC espelha simplesmente a importância de uma estreia valorizando o texto, bem na esteira do pensamento de Gasset y Ortega segundo o princípio de que «o mau em estética é a insu iciência», como tenho repetido algumas vezes.” Ora, é precisamente este aspecto da apreciação literária valorizando o texto que aqui chamamos à colação.
Não é preciso mostrar erudição e trazer para aqui Gasset y Ortega para, ao lermos um poema qualquer, mesmo que o seu autor já tenha falecido, como é o exemplo da Epopeia de Gigalmesh produzido na antiga Mesopotâmia, há milénios, vislumbrarmos nele a mentalidade précientí ica, o pensamento mítico, a visão social e a pertença cultural do seu autor. É impossível não ver isso. Senão, teríamos obras simplesmente universais, não teríamos obras deste ou daquele determinado espaço geográ ico nem teríamos autor algum. Do ponto de vista da análise de JT as obras seriam então todas anónimas, impessoais e apátridas.
Acontece porém, que cada espaço geográ ico da Terra, cada lugar onde o homem vive e cada forma de pensar de um autor “entram”, por meio da linguagem, no verso composto que está agora perante os nossos olhos. Por isso é que o júri do prémio António Jacinto, ao deparar com a obra em causa, encontrou indícios de um certo lugar que não é Angola naqueles versos. Isso pressupunha a
“Por seus frutos os conhecereis. Porventura colhemse uvas dos espinheiros, ou igos dos abrolhos?
Mateus 7:16”
vivência universal do seu autor. Se JT ou Carlos Ferreira, o apresentador da obra, não viram estes aspectos, então ocorreu aí, no acto de recepção, aquilo que eu chamaria de “armadilha literária”, ou “engodo do cânone literário ocidental” que prende o leitor à fascinação da obra bem construída, segundo a estética do lirismo eurocêntrico, só isso, sem levá-lo a descer aos fundamentos culturais da sua fabricação. Acontece, porém, que somos africanos nesta Aldeia Global. E essa africanidade, a vivência diária que temos com as coisas, os lugares e os espíritos espelham-se invariável e indelevelmente na obra produzida, a menos que o autor tenha nascido e sempre vivido no exílio.
A árvore e os frutos
O poema extravasa, na sua expressividade verbal, a própria psicologia, o modo de ser do autor. Por incrível que pareça, a poesia, e até mesmo o romance, falam com o sotaque individual do autor da obra.
É assim que a obra Mein Kampf tem no seu miolo ideológico a personalidade e representa mesmo o resultado da infância maltratada de Adolf Hitler. É assim que a obra O Capital inscreve na sua concepção a vivência histórica e o humanismo de Karl Marx. É assim que a obra Quem me Dera ser Onda deixa subsumir, na profundeza da crítica de costumes e na linguagem desenhada a partir dos clichés domésticos da urbe luandense, a alma de Manuel Rui. Porque a forma como Manuel Rui fala em público e o modo como ele traja são o espelho das suas obras literárias. Mesmo quando um autor, como Fernando Pessoa, cria mais de vinte heterónimos para a sua poesia e obras em prosa, no coração de todas essas obras perpassa o sentimento de um ocidental, o sentimento de um cidadão português, chamado Fernando Pessoa. É só ler para entender esta verdade. E é precisamente a partir do estudo da vida pessoal de Fernando Pessoa, é do facto de se saber que ele sempre foi celibatário, que se compreende a origem dos heterónimos como uma necessidade vital de dialogar com o seu eu solitário.
Ligação incindível
Obra e autor possuem uma ligação absolutamente incindível.
Por isso é que, se um intelectual da Malásia traduzir para a língua deste país alguns versos do poeta francês René Charr, falsi icando-lhe certas nuances geo-morfológicas, como forma de folclorizar esses versos e apresentá-los a público como sendo da sua autoria, pode, realmente, ser aceite e elogiado como a vanguarda da poesia malaia. A menos que, na Malásia, haja um crítico mais atento que possa investigar mais a fundo, e descubra então que o sentimento que se desvela naquele discurso, embora em língua local e até com algumas nuances de folclorização, é, na verdade, o sentimento de um ocidental, que ele até nem conhece, mas que ele “sabe” não provir da alma de um homem que sempre viveu naquela parte da Ásia e comeu a comida que lá se come. É esta a armadilha que já fez alguns júris e outros analistas (inclusive eu próprio) incorrer em erros de avaliação e é esta armadilha que levou alguns dos nossos mais velhos a aconselharem alguns poetas da geração do pós-independância (incluindo eu próprio) a escreverem segundo aquilo que consideravam poesia moderna de Angola.
Por isso, meu caro JT, num instante inicial nem é preciso conhecer “a pessoa” que a produziu. Só depois, para comprovar a veracidade da análise, se vai à pessoa, mas não à pessoa ísica, porém à pessoa cultural, ao veículo humano portador de cultura.
Quando se fez a pesquisa sobre a “pessoa” da Denise Kangandala não estávamos, como e óbvio, a contactar a pessoa biológica, mas a “pessoa cultural” e foi esta “pessoa cultural” que provou que o júri estava certo. É que, ao falarmos com a DK foi fácil constatar que a mesma não dominava a língua (no sentido da composição do discurso e da gramática) em que pretensamente escreveu os tais versos e o seu modo de pensar não tem nada a ver com a profunda metafísica presente nos versos de Ascensão Cósmica. Daí o meu espanto quando me interroguei sobre as razões que levaram um poeta da envergadura de JT, ao falar com ela (pronto, já não estou a afirmar que ‘conviveu’) não fez a ligação entre a “pessoa cultural” e a obra, visto não ter notado na obra o engodo do cânone acima mencionado.
Convém não ignorar, antes de terminarmos, que tudo partiu da tentativa de criação de mais um mito – desta feita o mito da vanguarda literária – no campo da Literatura angolana. Esta tentativa abriu luz sobre dois pressupostos fundamentais para a análise da moderna poesia angolana (e também da prosa): 1. O engodo do cânone ocidental; e 2. A inseparabilidade da pessoa e da obra – identidade cultural da obra. Seremos nós avessos à inovação? Nem pensar! Só que, inovação deve ser tomada no seu sentido amplo e não como assimilacionismo redutor. Porque a verdade é que as nossas palavras de vivermos com elas, embora construídas na língua portuguesa, são diferentes, têm, como o português brasileiro, o seu próprio sotaque. Nós não somos portugueses, nem somos europeus ou sul-americanos. Se a poesia não tem nenhuma correspondência com a vivência do autor (que nós, por vivermos aqui, bem conhecemos) temos é uma poesia livresca que vai tomar de empréstimo, só e só, bonitos versos já escritos. A este tema voltaremos nos próximos dias e meses do novo ano.