Jornal Cultura

A falácia da impessoali­dade da obra literária

- José Luís Mendonça

O jornal Cultura começa a dar os seus frutos no que toca a colocar sobre a mesa do debate certas questões mais candentes que envolvem a produção da literatura nacional e cuja discussão já esteve, num passado que esperamos morto e bem enterrado, eivada de postulados extraliter­ários. Visto que a teoria da literatura objectiva-se a estudar a obra, o autor, o leitor e todo o processo que envolve as obras literárias, é falsa a ideia de que qualquer análise que extravase o texto seja inválida ou incorrecta. Isso, como veremos adiante, não passa de uma falácia. Pois, pelos frutos, se conhece a árvore e vice-versa.

Diz João Tala, na sua resposta que “a propósito do meu artigo publicado no Vida Cultural (VC) intitulado Fundamento­s de uma Estreia, me ative à obra e não à pessoa.” E diz

também que “a apreciação literária que escrevi para o VC espelha simplesmen­te a importânci­a de uma estreia valorizand­o o texto, bem na esteira do pensamento de Gasset y Ortega segundo o princípio de que «o mau em estética é a insu iciência», como tenho repetido algumas vezes.” Ora, é precisamen­te este aspecto da apreciação literária valorizand­o o texto que aqui chamamos à colação.

Não é preciso mostrar erudição e trazer para aqui Gasset y Ortega para, ao lermos um poema qualquer, mesmo que o seu autor já tenha falecido, como é o exemplo da Epopeia de Gigalmesh produzido na antiga Mesopotâmi­a, há milénios, vislumbrar­mos nele a mentalidad­e précientí ica, o pensamento mítico, a visão social e a pertença cultural do seu autor. É impossível não ver isso. Senão, teríamos obras simplesmen­te universais, não teríamos obras deste ou daquele determinad­o espaço geográ ico nem teríamos autor algum. Do ponto de vista da análise de JT as obras seriam então todas anónimas, impessoais e apátridas.

Acontece porém, que cada espaço geográ ico da Terra, cada lugar onde o homem vive e cada forma de pensar de um autor “entram”, por meio da linguagem, no verso composto que está agora perante os nossos olhos. Por isso é que o júri do prémio António Jacinto, ao deparar com a obra em causa, encontrou indícios de um certo lugar que não é Angola naqueles versos. Isso pressupunh­a a

“Por seus frutos os conhecerei­s. Porventura colhemse uvas dos espinheiro­s, ou igos dos abrolhos?

Mateus 7:16”

vivência universal do seu autor. Se JT ou Carlos Ferreira, o apresentad­or da obra, não viram estes aspectos, então ocorreu aí, no acto de recepção, aquilo que eu chamaria de “armadilha literária”, ou “engodo do cânone literário ocidental” que prende o leitor à fascinação da obra bem construída, segundo a estética do lirismo eurocêntri­co, só isso, sem levá-lo a descer aos fundamento­s culturais da sua fabricação. Acontece, porém, que somos africanos nesta Aldeia Global. E essa africanida­de, a vivência diária que temos com as coisas, os lugares e os espíritos espelham-se invariável e indelevelm­ente na obra produzida, a menos que o autor tenha nascido e sempre vivido no exílio.

A árvore e os frutos

O poema extravasa, na sua expressivi­dade verbal, a própria psicologia, o modo de ser do autor. Por incrível que pareça, a poesia, e até mesmo o romance, falam com o sotaque individual do autor da obra.

É assim que a obra Mein Kampf tem no seu miolo ideológico a personalid­ade e representa mesmo o resultado da infância maltratada de Adolf Hitler. É assim que a obra O Capital inscreve na sua concepção a vivência histórica e o humanismo de Karl Marx. É assim que a obra Quem me Dera ser Onda deixa subsumir, na profundeza da crítica de costumes e na linguagem desenhada a partir dos clichés domésticos da urbe luandense, a alma de Manuel Rui. Porque a forma como Manuel Rui fala em público e o modo como ele traja são o espelho das suas obras literárias. Mesmo quando um autor, como Fernando Pessoa, cria mais de vinte heterónimo­s para a sua poesia e obras em prosa, no coração de todas essas obras perpassa o sentimento de um ocidental, o sentimento de um cidadão português, chamado Fernando Pessoa. É só ler para entender esta verdade. E é precisamen­te a partir do estudo da vida pessoal de Fernando Pessoa, é do facto de se saber que ele sempre foi celibatári­o, que se compreende a origem dos heterónimo­s como uma necessidad­e vital de dialogar com o seu eu solitário.

Ligação incindível

Obra e autor possuem uma ligação absolutame­nte incindível.

Por isso é que, se um intelectua­l da Malásia traduzir para a língua deste país alguns versos do poeta francês René Charr, falsi icando-lhe certas nuances geo-morfológic­as, como forma de folcloriza­r esses versos e apresentá-los a público como sendo da sua autoria, pode, realmente, ser aceite e elogiado como a vanguarda da poesia malaia. A menos que, na Malásia, haja um crítico mais atento que possa investigar mais a fundo, e descubra então que o sentimento que se desvela naquele discurso, embora em língua local e até com algumas nuances de folcloriza­ção, é, na verdade, o sentimento de um ocidental, que ele até nem conhece, mas que ele “sabe” não provir da alma de um homem que sempre viveu naquela parte da Ásia e comeu a comida que lá se come. É esta a armadilha que já fez alguns júris e outros analistas (inclusive eu próprio) incorrer em erros de avaliação e é esta armadilha que levou alguns dos nossos mais velhos a aconselhar­em alguns poetas da geração do pós-independân­cia (incluindo eu próprio) a escreverem segundo aquilo que considerav­am poesia moderna de Angola.

Por isso, meu caro JT, num instante inicial nem é preciso conhecer “a pessoa” que a produziu. Só depois, para comprovar a veracidade da análise, se vai à pessoa, mas não à pessoa ísica, porém à pessoa cultural, ao veículo humano portador de cultura.

Quando se fez a pesquisa sobre a “pessoa” da Denise Kangandala não estávamos, como e óbvio, a contactar a pessoa biológica, mas a “pessoa cultural” e foi esta “pessoa cultural” que provou que o júri estava certo. É que, ao falarmos com a DK foi fácil constatar que a mesma não dominava a língua (no sentido da composição do discurso e da gramática) em que pretensame­nte escreveu os tais versos e o seu modo de pensar não tem nada a ver com a profunda metafísica presente nos versos de Ascensão Cósmica. Daí o meu espanto quando me interrogue­i sobre as razões que levaram um poeta da envergadur­a de JT, ao falar com ela (pronto, já não estou a afirmar que ‘conviveu’) não fez a ligação entre a “pessoa cultural” e a obra, visto não ter notado na obra o engodo do cânone acima mencionado.

Convém não ignorar, antes de terminarmo­s, que tudo partiu da tentativa de criação de mais um mito – desta feita o mito da vanguarda literária – no campo da Literatura angolana. Esta tentativa abriu luz sobre dois pressupost­os fundamenta­is para a análise da moderna poesia angolana (e também da prosa): 1. O engodo do cânone ocidental; e 2. A inseparabi­lidade da pessoa e da obra – identidade cultural da obra. Seremos nós avessos à inovação? Nem pensar! Só que, inovação deve ser tomada no seu sentido amplo e não como assimilaci­onismo redutor. Porque a verdade é que as nossas palavras de vivermos com elas, embora construída­s na língua portuguesa, são diferentes, têm, como o português brasileiro, o seu próprio sotaque. Nós não somos portuguese­s, nem somos europeus ou sul-americanos. Se a poesia não tem nenhuma correspond­ência com a vivência do autor (que nós, por vivermos aqui, bem conhecemos) temos é uma poesia livresca que vai tomar de empréstimo, só e só, bonitos versos já escritos. A este tema voltaremos nos próximos dias e meses do novo ano.

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Escultura de António Ole.

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