Tenhoalma de kimbundu
MITO GASPAR
O saxofonista Hug Masekele com o seu trompete estabeleceu um diálogo melódico com o kimbundu do artista angolano
Um mito contestável que a geração do agora e a máquina editorial do mercado musical não tornaram rentável, ao contrário das improvisadas, vazias e repetitivas composições em português e inglês que têm in lamado o mercado musical e impondo esta paradoxal doutrina de gosto que o silêncio da maioria nos faz partícipes.
Diante desta realidade, na sensível linha da união entre o homem e o artista, Mito Gaspar tomou posições em defesa de ambos, sendo o seu afastamento dos palcos a mais contestada por pessoas e visionários que registam no seu canto um legado poderoso do saudoso período áureo da Música Popular Angolana e uma das propostas mais bem conseguidas a apresentar à novíssima geração musical, esta que tomou a mídia, as editoras e não fez esforços em destrinçar a procura da aura artística da externa necessidade mercantil.
No Jango da U.E.A, a musicalidade de Mito Gaspar em Maka à Quarta-feira, realizada no passado dia 29 de Janeiro, preencheu mais uma daquelas noites em que percebemos que estamos a discutir a procura da nova estética musical por encontrar entre a novidade fragmentada mas poderosamente visível e comercial e o primor musical que a geração anterior imprimiu e que hoje – por pura opção mercantil – a mídia ignora e silencia, icando o registo destas memórias orientadas e trazidas por um número reduzido de cantores e defensores de música e de angolanidade na música (arte que re licta o espaço sociológico do artista).
A voz da criação
Foi nesta ordem de ideias que, em resposta à crítica feita por um dos presentes, Mito Gaspar nos relatou que uma vez, durante um espetáculo na África do Sul, tinha o Mário Garnacho nos teclados, um baixista e a percussão do kilandukilo, quando, tocado pela música, entrou o exigente e singular saxofonista Hugh Masekele com o seu trompete e estabeleceu um diálogo melódico com o kimbundu do artista angolano nascido em Malange.
Para Mito, foi um exercício que veio provar que esta convivência (tradição e modernidade) é possível, passando então a defender que a “originalidade” não precisa ser tocada necessariamente com batuques de pele de leão, reco-reco de bordão ou de bambú, com os chocalhos e mais nada.
O debate se estendeu a várias vozes que guardam opiniões sobre o estado da música angolana. Preocupado, Jomo Fortunato questionou porque não termos um Anselmo Ralph a cantar as músicas dum cantor do calibre de Mito Gaspar, Carlos Gonçalves levantou a questão da falta da aplicação mercantil da música dos kotas que izeram sucesso no antigamente. Outro presente a irmou que o recolher de Mito era uma indicação do grande espírito da música que vive em Mito Gaspar, levanto assim a maka do artista depender de um espírito superior a ele e muitas vezes identi icado como “inspiração”; e um poeta ali presente chamou a atenção para o apagão mediático que cantores do calibre de Mito Gaspar sofrem ao se “refugiarem” no interior.
A ilusão
Outra interrogação surgiu em relação a esta “imitação” e “barulho” que vaidosamente tratamos por música, se convincentemente conseguimos nos a irmar lá fora como produto autêntico. A pertinência da opinião de Mito quanto a esta questão é escrupulosamente sincera, e critica: “Lá onde existe a diáspora angolana é certo que sim, pode haver gente que oiça. Mas a irmarmos que a nossa música lá fora tem grande aceitação é uma grande ilusão. Porque “lá fora” não é só na Europa, temos que fazer primeiro o trabalho de casa e nos contextualizarmos em África. Como é que estamos aqui com os nossos vizinhos do Congo, Moçambique, Cabo Verde, África do Sul e Botswana? Como é que estamos em África? Então para que sonharmos ilusoriamente em querer almejar o mundo? Para mim, isto não é um sonho: é um pesadelo. Enquanto tudo se circunscrever à capital, não temos como. A grande verdade é que temos de facto uma cultura muito rica, e isso nos faz um país único. Mas é preciso registar os ilhos (géneros musicais) da casa”.
Alma de kimbundu
“Não sei cantar em português e não arriscaria. Português é só mesmo para falar. Tenho alma de kimbundu. Conhecer o português só me ajudou a entender como de facto só em kimbundu atinjo a minha grande elevação e consequente satisfação musical”, justi ica o compositor.
Como muitos, teve os seus cantores que seguiu e que izeram parte da sua educação
estética. Quando iniciou, era imitador de David Zé, “pela forma como compõe e pelo cuidado e rigorosidade estética da língua kimbundu”, e So ia Rosa.
A tradição é escolha que toma como forma mais autêntica de se expressar. E também lhe despertou a necessidade das línguas maternas, desafiando-o a fazer grandes temáticas em kimbundu: “tinha o domínio e o imaginário de provérbios do kimbundu.
Não se trata de casualidade ou mera retórica temática”, reforça.
Em 1981, com o trio Henda vence o primeiro Festival Juvenil da Canção, aquele que foi o primeiro concurso pósindependência, com o poema “Havemos
de voltar”, de Agostinho Neto, cantado em kimbundu; e em 1983 ganha, com o mesmo trio, a primeira edição do Variante. Andou por Cuba, México, São Tomé e Príncipe em representação da música angolana e lembra que sempre teve boa crítica nos lugares por onde passou.