Marx, Lacan, Foucault e António Jacinto
Proponho-me continuar a ler a poesia de António Jacinto com a ajuda do marxismo, mas também a irmar obviamente que tal leitura se mostraria redutora se icasse nesse âmbito analítico, até porque, num seu poema, há uma epígrafe dupla de Lacan e uma referência a Van Gohg. Quem diria? Terá António Jacinto experimentado, com esse texto, a vertigem da pré-loucura?
O “Poema da alienação”, de António Jacinto, escrito na época do movimento em torno da revista Mensagem, é o texto em que melhor está expressa a dialéctica materialista da alienação do sujeito nas relações sociais e de produção de trabalho. Há nele uma recusa da concepção essencialista do sujeito – do ser -, quer na vertente fenomenológica de uma ontologia meta ísica, quer na do existencialismo individualizante, pois estabelece a constituição do ser no ato de agir, ou melhor, de interagir, de manifestação da subjectividade no encontro com o Outro através também dos actos de fala, pelo discurso, o qual se constitui, como diz o poema, “no Gesto e no Ser”, ambas as substâncias substantivas aparecendo com letra muito signi icativamente maiúscula. O sujeito que a igura do poeta interpela é apresentado pela imagem do “poema”, como se pode ler no seguinte verso ilustrativo da condição social do sujeito colectivo feito de muitos outros sujeitos consubstanciados em pro issões ou usos da força de trabalho: “O meu poema anda descalço na rua”. Entre a consciência do sujeito poético de que o próprio poema que escreve não é necessariamente o desejável, mas apenas o possível (“Não é este ainda o meu poema/(…)//Eu ainda não sei nem posso escrever o meu poema”), ou a igura do “poema” como sujeito alienado que se desconhece (ou seja, que desconhece a condição social e histórica em que se encontra) e a alienação que o texto espera vir a desocultar, ao poder mostrar a possibilidade de desalienação, está o decurso da história inscrito no percurso do discurso poético, porque a consciência social e política é também a consciência da linguagem, quer dizer, “a linguagem é tão velha como a consciência – a linguagem é a consciência real prática (…) a linguagem só nasce, como a consciência, da necessidade, da carência ísica do intercâmbio com outros homens” (Marx e Engels, in cap. Primeiro de “A ideologia alemã”, in Marx e Engels, Obras escolhidas, p. 22). Por isso, essa dialéctica materialista do trabalho como acção alienatória e da linguagem como possibilidade de expressão da alienação – trata-se de um trabalho sobre a linguagem – enforma a consciência de classe dos representantes do escasso proletariado angolano nas décadas de 4050, mais alargadamente do colonizado, do subalterno, sobretudo do negro, mas também de outras raças ou grupos socio-raciais. O poema “Carta dum contratado”, mais do que qualquer outro, combina com o “Poema da alienação”, para mostrar que a condição de alienação passa pela alienação da própria força de trabalho e pela não consciência da situação, pela sua não transformação em discurso re lexivo e em acção revolucionária, a que podemos chamar, com Althusser, trabalho ou prática teórica, seja ele do poeta colonizado ou do colonizado que não é poeta, mas pode vir a sê-lo, pois “não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência”, como se pode ler no cap. 1 de “A ideologia alemã”, de Marx e Engels (in Obras escolhidas, p. 14). Para Lacan, o sujeito depende do signi icante e este está, desde logo, no campo do Outro, uma vez que a linguagem é social, assim se traduzindo a alienação justamente como esse “campo do Outro”, onde se engendrou a primeira alienação, conforme Hegel, a que levou o homem a sujeitar-se à via da escravização – “A liberdade ou a vida!” – perdendo as duas se opta pela liberdade ou perdendo esta, a liberdade, se prefere a vida (Lacan, Les quatre concepts…, p. 229 e 237).
António Jacinto mostra, nesses seus poemas e noutros da mesma época, que me abstenho de enumerar, como cada sujeito – que é ainda objeto -, representando um grupo sociopro issional ou uma franja de classe, não está ainda pronto para um devir que o torne outro, já não subalterno (conforme Spivak: “no interior e no exterior do circuito da violência epistémica da lei e da educação imperialistas que se ajustam a um texto económico antecedente, podem os subalternos/as subalternas falar?”) (p. 43), mas revoltando-se e revolucionando o seu tempo, expressando-se e expressando a sua visão de mundo, numa luta colectiva contra o colonialismo e o imperialismo. Ou seja, o subalterno, que é o próprio António Jacinto, enquanto branco de segunda categoria, conforme a distinção colonial, pode encarar uma luta de libertação da sua condição social apenas através de uma mais ampla luta de libertação nacional, mas, para isso, necessita de um trabalho mais complexo de libertação cultural, de uma nova construção intelectual: “O trabalho mais complexo conta apenas como trabalho simples potenciado, ou antes, multiplicado, de tal forma que um menor quantum de trabalho complexo é igual a um quantum maior de trabalho simples” (Marx, O capital. Livro Primeiro, tomo 1, p. 56). Esse trabalho, o poeta pode fazê-lo na sua poesia, ao expor o processo de alienação do colonizado: “O meu poema (…) é pobre roto e sujo/vive na noite da ignorância/o meu poema nada sabe de si/nem sabe pedir/O meu poema foi feito para se dar/pa-