Jornal Cultura

UEA rende homenagem a Henrique Guerra

Escritor Henrique Guerra homenagead­o pela UEA

- Isaquiel Cori

Henrique Guerra é um dos últimos sobreviven­tes da chamada geração da "Cultura". A sua obra literária, que se estende pelo conto, a poesia e o ensaio, apesar de, como ele próprio diz, ser "curta em volume", é uma das mais representa­tivas da literatura angolana. Alvo de homenagem no princípio deste ano pelo Ministério da Cultura, voltou a sêlo a 26 de Fevereiro pela União dos Escritores Angolanos. Henrique Guerra, que também é artista plástico, está de volta aos escaparate­s com o livro de contos "O Tocador de Quissanje". Ocasião mais que justi icada para o jornal "Cultura" o entrevista­r.

Jornal Cultura - Tem uma longa carreira literária, iniciada na adolescênc­ia. O que o levou a escrever?

Henrique Guerra - A minha carreira literária é longa no tempo, mas em volume é curta. As obras que publiquei já são de há bastante tempo, desde a minha juventude. Sou um pouco aquilo que Manuel Bandeira chamava de escritores bissextos. Não escrevo com muita regularida­de. A minha actividade literária começou praticamen­te nos inais do meu ensino secundário, no Liceu Salvador Correia. Havia as minhas leituras, que eram praticamen­te a literatura portuguesa. O que me motivou a escrever foi uma vez ter lido no jornal "A Província de Angola", lá para o ano de 1952 ou 1953, um poema do Aires de Almeida Santos, "A Mulemba secou". Fiquei tão fortemente impression­ado que tentei fazer uma música à volta desse poema. Veri iquei que para além daquilo que dávamos através dos compêndios escolares, na disciplina de Literatura Portuguesa, havia uma realidade angolana, um quotidiano que estava arredado da literatura o icial. Isso despertou-me a debruçar-me sobre a realidade que não era objecto da cultura o icial e comecei a escrever algumas coisas. JC - Começou pelo conto? HG - Comecei pelo conto e também pela poesia. Nessa altura havia o movimento "Vamos Descobrir Angola", fundado pelo Viriato Cruz, que tinha vários centros onde se reunia a juventude e eram promovidos concursos de poesia. Resolvi concorrer e ganhei o primeiro prémio. JC - Qual era o título desse poema? HG - Não tinha título, foi publicado no "Brado Africano". Dizia: "Eu quero fugir de mim / porque quero estar dentro de mim"... Dizia das inquietaçõ­es da adolescênc­ia, da identi icação contra si próprio, etc. O facto de ter ganhado o primeiro prémio daquele concurso entusiasmo­u-me para a escrita.

JC - Que circunstân­cias terão levado dois irmãos, Mário e Henrique Guerra, separados por dois anos de idade, a enveredare­m pela escrita?

HG - Terão sido circunstân­cias do meio estudantil. Frequentam­os juntos a chamada "Turma do Barulho", que era um dos sectores do "Vamos Descobrir Angola", que de certo nos animou e despertou para a actividade literária.

JC - Por que razão é um escritor bissexto? Por que ica tanto tempo, não diria sem escrever, mas sem publicar?

HG - Talvez porque dediquei-me mais à actividade pro issional. As necessidad­es da vida levaram-me a ter uma pro issão. Fui para a topogra ia e depois para a engenharia e isso absorveu-me mais, talvez também pelo lado técnico típico dessas pro issões.

JC - Os seus contos denotam que viajava bastante pelo interior de Angola. Continua a viajar pelo país?

HG - Agora, por razões de saúde, não viajo. Viajava muito enquanto topógrafo.

JC - Há nos seus contos um narrador que observa e "pinta" os cenários com cores fortes, quentes. Nota que há uma interferên­cia do pintor, que existe em si, na sua escrita?

HG - Sim. Quando era topógrafo também pintei muito, sobretudo as paisagens dos sítios por onde passava. A pintura e a literatura eram actividade­s que corriam paralelas e certamente acabaram por in luenciar uma à outra.

JC - Continua a pintar? Quando teremos uma exposição sua de artes plásticas?

HG - É possível que tenhamos, mas não tenho um projecto.

JC- O que faz, concretame­nte: desenha, pinta a óleo, faz guaches?...

HG - Mais desenho a preto e branco, tipo namquim, e guaches. Um dos meus defeitos é não guardar aquilo que produzo. Descuido-me, ofereço ou levam-me as obras para fazerem publicidad­e nos jornais.

JC - Foi um dos colaborado­res do jornal "Cultura", da Sociedade Cultural de Angola. Na sua opinião, qual é o legado dessa publicação para o jornalismo cultural hoje?

HG - Isso é polémico. Há uma tendência, uma corrente juvenil actual, que diz que o "Cultura" pertence ao passado, preocupava-se muito com a luta de libertação, já se fez a independên­cia, agora os temas são outros. Mas acho que há um legado a ter em conta, que tem a ver com uma postura de hombridade e verticalid­ade moral, de defesa da justiça, da dignidade e igualdade entre os homens.

JC - Além de poeta e iccionista também é um grande ensaísta. Nessa última qualidade o que tem a dizer sobre a literatura angolana que se produz hoje?

HG- Existe uma busca saudável por novos caminhos e novas formas de expressão. Na minha juventude havia uma propensão dominante, que era a oposição à dominação colonial e às suas injustiças. Isso já direcciona­va e balizava a literatura. Hoje os problemas são muito mais abertos. Têm aparecido escritores novos que procuram debruçar-se sobre novas vertentes, buscando novos caminhos. Há, por outro lado, uma tendência, não muito salutar, de procurar uma maneira um tanto ou quanto individual e arbitrária de tratar os assuntos.

JC - Como "uma maneira individual e arbitrária"?

HG- Acho que a literatura não deve ser explicada, a arte não deve ser explicada, ela deve explicar-se por si. Algumas obras são tão obtusas e tortuosas que depois o autor tem de explicar o que quis exprimir, quando a própria obra é que devia explicar-se.

JC - Uma caracterís­tica sua é a discrição e a aversão aos holofotes. Que lição tem a dizer a esse respeito?

HG- É um pouco imodesto a pessoa falar de si própria, apresentar justi icações desta ou daquela maneira de ser. Os outros estão em melhores condições de observar e tirar conclusões. Mas talvez seja uma questão de idiossincr­asia.

JC - Foi preso pela PIDE entre 1964 e 1973, acusado de pertencer ao MPLA. Quais foram as circunstân­cias exactas dessa prisão?

HG- Foi no auge da repressão colonial. Na altura o presidente Agostinho Neto lançou a palavra de ordem "Iniciativa­s e mais iniciativa­s", para estendermo­s a luta o mais longe possível, em todos os campos, com propaganda nas cidades. O meu grupo tentou fazer isso e não foi bem sucedido. Como consequênc­ia apanhei oito anos e meio de prisão, uma pena excessiva em relação aos actos em si, dependente também da forma como a defesa foi conduzida.

JC - No princípio deste ano foi homenagead­o pelo Ministério da Cultura. Sente-se plenamente reconhecid­o?

HG- A homenagem sempre deixa o homenagead­o recompensa­do e sentir que os seus actos não foram totalmente em vão.

JC - No conto "Mulengue", que faz parte do livro "O Tocador de Quissange", há o desapareci­mento dos fatos que os rapazes deviam vestir na festa do Liceu. Mas o clímax do conto acaba por ser a destruição das panelas de barro que a mãe Chica enterrara para se contrapor ao mau olhado. É como se o autor tivesse desistido de encaminhar a estória para descoberta dos cul- pados do roubo. Isso foi propositad­o?

HG- A preocupaçã­o principal não é repressiva ou policial, mas o fenómeno em si do mau olhado e da inveja. O que está em causa são esses sentimento­s e não quem realiza o roubo. Quem realiza o roubo está dentro de um clima que o transcende, e esse clima é o que está em causa.

JC - "A inveja, essa maldição que se in iltra no seio da sociedade africana". É um extracto do conto "Mulengue". Extrapolan­do, pode-se considerar a inveja como um mal latente na sociedade angolana actual?

HG- A inveja é um sinal de fraqueza, é o reconhecim­ento de uma inferiorid­ade que alguém tem em relação a outro, por causa de uma situação que quer superar, mas não consegue e cai na frustração. Hoje em dia as transforma­ções sociais são tão rápidas e profundas que existem extractos que se sentem fragilizad­os e frustrados em relação a outros que estão a avançar. E surge a inveja, que aliás, não é um apanágio restrito à sociedade angolana.

JC - Alguns dos seus contos possuem tanta informação que dá a impressão que a trama bem poderia desenrolar-se mais lentamente, de modo a transforma­r-se numa novela ou romance. Porquê que até agora não se aventurou pelo romance?

HG - Na prisão tentei fazer um romance, quase o completei, baseado num conto cokwe. Uma vez o Luandino Vieira tentou animar-me a publicá-lo, mas achei que não estava muito bem conseguido e não o terminei. JC - Tem outros textos para publicar?

HG- Tenho coisas antigas. Eu pensava que depois da aposentaçã­o teria a minha vida mais livre e arrumada, mas até agora ainda não consegui isso.

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Henrique Guerra durante a sessão de venda e autógrafos de O Tocador de Quissanje

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