O grau zero da escrita
Trata-se de um daqueles livros que, mesmo sendo pequenos, encerram neles uma monumental grandeza. O que nos propomos aqui fazer é uma recensão sumária da primeira parte do Le Degré Zero de l´Écriture, conforme estampado no original de 1953, publicado pelas Éditions du Seuil, agora numa versão soft chancelada pelas edições70.
A introdução à obra é feita em sucintas quatro páginas, donde se disseca a linguagem escrita de todos os axiomas para a elevar a um nível em “cuja função já não é apenas comunicar ou exprimir, mas impor
um além da linguagem” (p.7). Uma linguagem que caminha no sentido da história para com ela dialogar. Esta relação da linguagem escrita com a história ancora na ideia de perenidade sem a qual a literatura como instituição sacralizadora da ordem dos signos perde o seu fundamento. E neste sentido, o autor defende que a escrita passou por aquilo a que chamou de “solidi icação progressiva” ou seja, foi primeiro objecto de um olhar, depois de um fazer, e inalmente de um assassínio. Portanto, “o grau zero da escrita” corresponde à forma última da linguagem: a ausência, depois do assassínio. Deste modo, Barthes denuncia um movimento de negação que visa a aniquilação dos signos trazendo à luz “um escritor sem literatura”.
A primeira parte do livro é dedicada a uma busca densa pela resposta à questão: o que é a escrita? Servindo-se das suas habilidades de ensaísta impuro (como ele mesmo se considerava) e de conhecedor exímio da literatura francesa do seu tempo, Barthes constrói toda uma problemática em torno da escrita como exercício de liberdade e alvo de condicionamento histórico. De ine para o efeito três variáveis: o estilo, a língua e a fala.
A primeira é vista como um fenómeno de natureza germinativa, associado às subjectividades e, por isso, situada no plano vertical. Ou seja, o estilo é uma característica da escrita que não está aberta a negociações pois não possui uma existência própria. A sua realidade é opaca e depende de uma experiência que se funda na matéria. O autor ressalta que, “apesar do
seu requinte, o estilo tem sempre qualquer coisa de bruto: é uma forma sem destino, é o produto de um impulso, não de uma intenção, é como uma dimensão vertical e solitá
ria do pensamento” (p.14). A segunda é abordada numa tele-relação que se estabelece entre o escritor e a sociedade. A língua enquanto instrumento de trabalho do escritor está aquém da literatura. É apenas um horizonte humano que se instala entre ele e o seu tempo, condicionando a sua liberdade criativa. O autor apresenta o exercício de utilização de uma língua como uma operação de diferenciação entre os signos conhecidos e os que se pressupõe desconhecer. Uma operação que caminha consentindo negações. Portanto, “a língua não é lugar de compromisso social, apenas um re lexo sem escolha, a propriedade indivisa dos homens e não dos escritores; ela permanece exterior ao ritual das letras, é um objecto social por
de inição, não por eleição” (p.13-14). A terceira e última variável que operacionaliza esta interessante problematização da escrita é a fala. Diferente das anteriores, ela possui uma estrutura horizontal, apresenta-se aberta ao diálogo e tudo o que produz é colocado ao consumo imediato do receptor. Para o autor, a fala assume-se como um produto de consumo imediato, ao transferir, por meio do silêncio do verbo e dos seus movimentos, o conteúdo do acto comunicativo sem atrasos.
A escrita é uma função que se realiza na relação entre criação e sociedade. A escrita é, portanto, uma realidade formal (e geral, acrescentaríamos nós) que nasce entre a língua e o estilo. O escritor faz as suas escolhas, dentro das escolhas que a história lhe impõe, individualiza-se e compromete-se com um determinado ethos. É este compromisso que de ine os limites da sua liberdade, embora a escrita como exercício de liberdade seja apenas um momento.