Jornal Cultura

Notas de um cantautor

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Dizia-me um dia uma menina que gostava de uma certa canção porque era «azul»; percebi-a instantane­amente e pus-me mentalment­e a classi icar algumas das minhas melodias preferidas por cores. Julgava-nos sozinhas nesta cruzada lírica, quando descobri, numa conversa televisiva apresentad­a por Kizua Gourgel (no evento TEDxLuanda), que esta ideia não era apenas uma fugaz impressão, sendo que é comum na linguagem codi icada entre músicos, com signi icado tão real que dir-se-ia mensurável. Parei para ouvir o resto da

fui icando presa… – o músico detalhava, numa apresentaç­ão estruturad­a para leigos, o signi icado das notas baixas e dos tons mais altos, associando as primeiras às emoções mais cinzentas, negativas e os segundos à festa, à alegria, à celebração. Num timbre suavemente rouco, que lhe confere aliás uma aura especial, Kizua revelava-se então um excelente pedagogo, discorrend­o abertament­e sobre a relevância da música na vida das pessoas. Partilhand­o o seu posicionam­ento, de pronto me centrei na clareza do discurso e na voz da sua guitarra, que nos convidava já a arriscar uma nota; «a música pode exacerbar sentimento­s, exercita a mente, ajuda a memorizar textos» – e aqui o cantor exempli ica falando da tabuada – memória comum dos verdes anos. Mas a música também

as pessoas; os franceses perceberam-no cristaliza­ndo esse entendimen­to numa expressão icónica: «la musique adoucit les moeurs». Ou não: claramente a música pode, também, servir de incentivo ao combate, de propaganda, passar mensagens, contar histórias, ligar pessoas, estabelece­r laços culturais. Percebem-se assim as inegáveis vantagens de proporcion­ar o contacto com a música desde a primeira infância, começando pelas canções de embalar que todas as mães e papás sabem cantar: existem, a esse respeito, vários estudos (SANSONE, 2004; ADESMAN, 2009) que comprovam a e icácia da música para acalmar o choro dos bebés. Em suma, a música é uma constante da vida: nas festividad­es, nos rituais religiosos, nos eventos desportivo­s, na educação, no amor. Kizua fala-nos ainda da noção de uma interessan­te ferramenta terapêutic­a usada para contornar di iculdades da fala, controlo do stress, e na doença mental. As palavras do cantautor exalam harmonia, a mesma que, lembra, é a beleza que nasce quando as notas se dão as mãos. Como na vida, sozinhos, o nosso potencial não loresce, carece de signi icado. Buscamos incessante­mente criar laços, formar conjuntos: na matemática, como na música, duas linguagens que me são vitais.

Gosto de pessoas que rompem tendências e têm a coragem de defender até às últimas consequênc­ias aquilo em que acreditam; parece-me ser o caso de Kizua Gourgel, um purista, um perfeccion­ista, que encontra no contacto com o público dos bares onde toca uma energia que não dispensa; será a sua maneira de sentir a temperatur­a da mensagem, de perceber até que ponto toca corações e in luencia vidas. Sem dúvida que honra a cada acorde a herança de seu pai, Beto Gourgel, terna referência da música angolana; porém, soube, como poucos, acrescenta­r a sua marca a esse património familiar, que transcende já os limites da pátria. A música não conhece fronteiras, não respeita cadeados nem se deixa enclausura­r. Apenas de passagem, permito-me referir a valiosa prestação de Kizua no Festival de Jazz de Luanda, em 2011, os prestigian­tes prémios que dão visibilida­de ao seu trabalho, e a aceitação cada vez mais notória do público, espelhando o amadurecim­ento e re inamento das suas criações. Lisboa teve a honra de recebê-lo numa noite especial no restaurant­e-bar Harlem-Soul, Jazz & Lifestyle, no Chiado, a 7 de Janeiro último, onde interpreto­u canções de outros autores e temas da sua lavra. Creio encontrar, na linguagem musical deste artífice da melodia, sobretudo no que se refere ao uso do baixo, alguns paralelism­os com nomes incontorná­veis do panorama musical português: Jorge Palma, Paulo Gonzo, Rui Veloso, Pedro Abrunhosa. Poder-se-ia especular sobre essas semelhança­s, fruto de uma mesma escola ou de uma atitude similar perante a música, perante a vida.

Se fechar os olhos, deixo-me viajar na fusão de semba, rock e jazz que tão bem defende com o seu tempero único. Claramente, a minha preferênci­a, entre o muito de bom que este músico já ofereceu ao seu público, é a balada – que conta igualmente com a sublime prestação de Yola Semedo. Todos os ins podem ser assustador­es, excepto este: «depois do im», juraria que Kizua há-de continuar a oferecer o seu talento nos bares, ou através dos álbuns, com o seu enorme abraço musical inclusivo e intimista.

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