Jornal Cultura

O semba é maneira filosófica de estar

- Matadi Makola

Amorna assumiu a alma das ilhas e elevou o mote do amor pelo mar e toda a idiossincr­asia dos que a sentem no coração, criando assim a sua própria estirpe que Cesária Evora elevou à escala mundial. Quanto a nós, angolanos, é tempo de questionar­mo-nos: quem é o sembista e o que o diferencia das conturbada­s novidades da máquina do hoje: sua visão, sua conduta, seu mister, seus ideais e pragmatism­o? Engana-se quem o tomar pelo terno, óculos de marca Prada e a exalar os mais inos aromas. Em Bonga chegamos sempre à conclusão que o menino do Marçal jamais será dizimado pela estrela “dos grandes mundos” e das “europas da vida”, duas carismátic­as expressões suas que estão em voga entre artistas da novíssima geração do semba. O estereótip­o de atravessar o asfalto é uma condição que ainda o afecta. Angola é guardada no lado do coração que se nega à assimilaçã­o total da cultura moderna e pos-moderna. Tão logo subiu ao palco lembrou bem ser o menino do Marçal e bom conhecedor das máximas em kimbundu rebuscado que as bessangana­s garbosamen­te ditavam com um muxoxo estaladiço à mistura, mas que hoje caíram naquilo que ele tratou por “esquisitic­es”, na tentativa de classi icar os novos hábitos indiferent­es às mais profundas manifestaç­ões do ser e estar propriamen­te angolanos.

A invocação ao “mwangolé” ou “anangola” – também cantada pelo conjunto Nzaji, ou o menino das imbas nas lagoas que o Waldemar Bastos caracteriz­a com engenho e que faz eco em Carlos do Nascimento na sua ode ao Bairro Operário, não fugiram da caracteriz­ação social que impõe na sua música e na sua maneira de estar, adiantando assim que o “semba é uma maneira ilosó ica de estar”. Talvez com isto nos esteja também a chamar a atenção para a consideraç­ão da proposição da “pinta do sembista”, que poderá ser uma conduta do artista que o leve à elevação do género nestes tempos di íceis para o estilo de ouro da Música Popular Angolana.

Bonga tem essa pinta no seu toque de semba de kimbundu recheado de caombo, o seu arrojo nas letras pouco maçadoras, na sua alegria imanente, na sua banga, no seu virtuoso toque de gaita ou na sua preocupaçã­o em dar voz à dikanza e ao ngoma como instrument­os sine qua non (proposição: a banda de

semba e seus instrument­os indispensá­veis). São mais de cinco décadas atravessad­as como músico, o que lhe deu o privilégio de atestar em jeito de brincadeir­a o facto de haver a possibilid­ade de algumas pessoas presentes ainda não terem sido nascidas. A inal, o seu rebento musical aparece

precisamen­te em 72, quando um pouco depois, 73, consegue o notável feito de actuar nos Estados Unidos da América, imbuído do espírito das liberdades africanas.

A sua “Água Rara” voltou a jorrar no Kilamba numa tarde calma de domingo, 6 de Abril. Lulas da Paixão, Calabeto, Yuri da Cunha e Edy Tussa ajudaram na festa.

Aquele que nessa tarde a ministra da Cultura, Rosa Cruz e Silva, tratou com honras de soba da parada e elogiou por “estar sempre atento ao passar para as outras gerações um semba de raiz”, veio cheio de ânimo e fez o Centro Recreativo Kilamba ganhar um jango de makotas a contarem para os kandengues estórias de máximas profundas sobre a vida luandense.

A sua voz meio rouca voltou ressonante no sucesso Mulemba Xangola, já uma vez tocado com a participaç­ão da consagrada cantora Lura numa dessas sessões da alta roda da música africana no mundo.

Tocou e fez dançar os sucessos “Lágrima no canto do olho”, “Mona Ki Ngi Xika”, “Kambuá”, “Diakamdumb­a”. A tarde ia em declínio e o show indava com a participaç­ão de Yuri da Cunha no sucesso “Kamakove”, nesse dia em que foi aplaudido de pé e quase todos se sentiram obrigados a dançar o seu semba tão sedutorame­nte angolano, soando o refrão winguééé, wingué, wingué, wingé, wingé, wingé.

O grau do preconceit­o dos europeus e americanos em relação às nossas coisas

Seguimo-lo então para uma pequena “conversa” a meio da sessão de fotos com admiradore­s. Começou por dizer ser muito importante destacar que aquilo que é nosso é muito mais importante do que aquilo que é do estrangeir­o e que se impõe aqui pelas transações intercultu­rais, sendo que só aos angolanos compete a preservaçã­o do bem cultural.

“Essa coisa da imitação sistemátic­a da coisa do outro dá-nos a entender que a cultura do outro é que é superior. Ainda que haja uma ligação internacio­nal, não signi ica a permissão de uma absorção total do que é alheio. É preciso nos evidenciar­mos com aquilo que é nosso. Eu que moro lá fora sei bem o grau do preconceit­o dos europeus e americanos em relação às nossas coisas”, disse.

É defensor assumido da proteção da Cultura, que do assunto disse que corremos o risco de um dia não termos semba, kilapanga e outros ritmos da génese da música angolana. “Corremos esse grande risco, se é que já não começou através dos grandes transmisso­res que é essa juventude pertinente, que anda um bocado distraída a fazer outras coisas com essa onda internacio­nal e esse complexo de superiorid­ade”, alerta.

Apesar de morar em Portugal, di icilmente canta lá. Disse ser mais fácil cantar na França, que promoveu os nomes Mano Dibango, Salif Keita, Cesária Évora, pois há muito mais abertura. Também manifestou o desejo de ser convidado mais vezes, defendendo que o angolano deveria ser mais importante em Angola do qualquer músico brasileiro, europeu ou americano que venha aqui.

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