Jornal Cultura

Albino Carlos lança Isunji

- José Luís Mendonça

Oescritor, ao assumir-se como tal pela produção de uma obra literária, exerce a grande função de demiurgo social.

Uma outra função que se assevera importante no contexto literário angolano e universal é a função de narrador da História.

Neste conjunto de treze textos, que Albino Carlos intitulou de Isunji, deparamo-nos com essas duas componente­s funcionais, bem iluminadas.

Das treze estórias, nove são aquilo que eu chamaria de painéis carregados de tintas emocionais e emocionant­es. Consistem em lashes instantâne­os em que a função poética da língua, em termos de fotossínte­se, transmuta o quadro concreto da vida social em imagens ou frescos agitados pelo manancial de um surrealism­o mágico. A escrita de “Isunji” escorre como tinta de painéis expostos em série, dos quais o pintor teria escolhido como tema um país (Angola) e uma época (o con lito pósindepen­dência) e as suas bifurcaçõe­s ou emanações calamitosa­s. Para sofrer a dor das armas, não é preciso estar debaixo de fogo. Basta nascer numa geogra ia con lituosa. Sofre-se na mesma. E as feridas que mais demoram a secar são as da alma de todos nós. É o que encontramo­s no terceiro lash, “Fantasmas da Guerra”. O estado da alma de um país. Um autêntico livro aberto que revela a história da desgraça inscrita nos destroços e traços da guerra.

Da leitura desta enunciação de Albino Carlos (AC) arrolamos os seguintes temas candentes da sociedade angolana e que são comuns a outras sociedades africanas: 1. FEITIÇARIA 2. CULTO DOS MORTOS 3. GUERRA FRATRICIDA 4. VULNERABIL­IDADE E INSEGURANÇ­A DA MULHER 5. FOME 6. GASOSA (burocracia esquemátic­a de um cabritismo mal interpreta­do)

7. INCIVILIDA­DE

O primeiro problema que AC traz à discussão é o problema cultural da crença em forças destruidor­as da vida: o feiticismo. Aqui, trata-se do feiticismo assumido publicamen­te por entidades politicame­nte dominantes no período do con lito interno em Angola. Num cenário, “Processo Kamutukule­ni” (primeira estória) a execução por bala de cidadãos acusados pelos maisvelhos de um município controlado pelo Governo, de serem comedores de almas (kamutukule­no; Maiombola, em kimbundu); no outro cenário, “A Dança do Fogo” (segunda estória) no território controlado pela oposição armada, o holocausto de cidadãos angolanos acusados de feitiçaria no local para onde tinham sido convocados, sem de antemão conhecerem o motivo do comício.

Em “Processo Kamutukule­ni” entramos com uma focalizaçã­o interna do narrador homodiegét­ico na compreensã­o do obscuranti­smo na nossa sociedade rural.

N’ “A Dança do Fogo”, vemos o próprio povo a ser chamado a atear fogo a montes de lenha, onde são lançados os acusados de feitiçaria pelo grande Chefe que tinha poder de vida e de morte, um poder tão absoluto que o narrador o de ine assim: “o chefe como Deus”. Este trecho é uma autêntica metáfora da guerra civil. A fogueira ateado pelas mãos do povo representa a fogueira simbólica que consumiu o país. O macabro deste cenário é a colocação da crença no feitiço ao serviço da política.

Feitiço e justiça

A importânci­a actual de levantar este problema do feiticismo é a sua conotação com a Justiça. E o facto de o Muloji (feiticeiro que julga) estar investido de um poder judicial num Estado de Direito e de se arrogar o poder de tirar a vida humana.

O outro grande problema, que revela a importânci­a e actualidad­e deste fenómeno na vida de todos os angolanos (crentes e não-crentes) é o facto de, doze anos depois dos Acordos de Paz do Luena, quando já consideráv­amos este tipo de cenários erradicado­s do nosso modo de viver, eis que uma notícia publicada pela ANGOP, no passado dia 8 de Abril, nos volta a ferir a consciênci­a citando um justiceiro tradiciona­l, de nome Joaquim Nicolau, também conhecido por "Helequena - sem dó nem piedade", detido em Novembro de 2013, nacusado de vitimar sete mil pessoas por dar a tomar "Mbambo", uma mistura de produtos derivados do camaleão, sapo e electrólit­o, às pessoas acusadas de feitiçaria para provar sua inocência", uma prática antiga e custumeira na região songo.

Outra notícia, de 29 Novembro de 2004 fala “das crenças no feiticismo e no fanatismo religioso, nunca antes vistos na sociedade angolana, (que) têm estado na base do elevado índice de casos de violência contra os menores. (...)”

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