Albino Carlos lança Isunji
Oescritor, ao assumir-se como tal pela produção de uma obra literária, exerce a grande função de demiurgo social.
Uma outra função que se assevera importante no contexto literário angolano e universal é a função de narrador da História.
Neste conjunto de treze textos, que Albino Carlos intitulou de Isunji, deparamo-nos com essas duas componentes funcionais, bem iluminadas.
Das treze estórias, nove são aquilo que eu chamaria de painéis carregados de tintas emocionais e emocionantes. Consistem em lashes instantâneos em que a função poética da língua, em termos de fotossíntese, transmuta o quadro concreto da vida social em imagens ou frescos agitados pelo manancial de um surrealismo mágico. A escrita de “Isunji” escorre como tinta de painéis expostos em série, dos quais o pintor teria escolhido como tema um país (Angola) e uma época (o con lito pósindependência) e as suas bifurcações ou emanações calamitosas. Para sofrer a dor das armas, não é preciso estar debaixo de fogo. Basta nascer numa geogra ia con lituosa. Sofre-se na mesma. E as feridas que mais demoram a secar são as da alma de todos nós. É o que encontramos no terceiro lash, “Fantasmas da Guerra”. O estado da alma de um país. Um autêntico livro aberto que revela a história da desgraça inscrita nos destroços e traços da guerra.
Da leitura desta enunciação de Albino Carlos (AC) arrolamos os seguintes temas candentes da sociedade angolana e que são comuns a outras sociedades africanas: 1. FEITIÇARIA 2. CULTO DOS MORTOS 3. GUERRA FRATRICIDA 4. VULNERABILIDADE E INSEGURANÇA DA MULHER 5. FOME 6. GASOSA (burocracia esquemática de um cabritismo mal interpretado)
7. INCIVILIDADE
O primeiro problema que AC traz à discussão é o problema cultural da crença em forças destruidoras da vida: o feiticismo. Aqui, trata-se do feiticismo assumido publicamente por entidades politicamente dominantes no período do con lito interno em Angola. Num cenário, “Processo Kamutukuleni” (primeira estória) a execução por bala de cidadãos acusados pelos maisvelhos de um município controlado pelo Governo, de serem comedores de almas (kamutukuleno; Maiombola, em kimbundu); no outro cenário, “A Dança do Fogo” (segunda estória) no território controlado pela oposição armada, o holocausto de cidadãos angolanos acusados de feitiçaria no local para onde tinham sido convocados, sem de antemão conhecerem o motivo do comício.
Em “Processo Kamutukuleni” entramos com uma focalização interna do narrador homodiegético na compreensão do obscurantismo na nossa sociedade rural.
N’ “A Dança do Fogo”, vemos o próprio povo a ser chamado a atear fogo a montes de lenha, onde são lançados os acusados de feitiçaria pelo grande Chefe que tinha poder de vida e de morte, um poder tão absoluto que o narrador o de ine assim: “o chefe como Deus”. Este trecho é uma autêntica metáfora da guerra civil. A fogueira ateado pelas mãos do povo representa a fogueira simbólica que consumiu o país. O macabro deste cenário é a colocação da crença no feitiço ao serviço da política.
Feitiço e justiça
A importância actual de levantar este problema do feiticismo é a sua conotação com a Justiça. E o facto de o Muloji (feiticeiro que julga) estar investido de um poder judicial num Estado de Direito e de se arrogar o poder de tirar a vida humana.
O outro grande problema, que revela a importância e actualidade deste fenómeno na vida de todos os angolanos (crentes e não-crentes) é o facto de, doze anos depois dos Acordos de Paz do Luena, quando já considerávamos este tipo de cenários erradicados do nosso modo de viver, eis que uma notícia publicada pela ANGOP, no passado dia 8 de Abril, nos volta a ferir a consciência citando um justiceiro tradicional, de nome Joaquim Nicolau, também conhecido por "Helequena - sem dó nem piedade", detido em Novembro de 2013, nacusado de vitimar sete mil pessoas por dar a tomar "Mbambo", uma mistura de produtos derivados do camaleão, sapo e electrólito, às pessoas acusadas de feitiçaria para provar sua inocência", uma prática antiga e custumeira na região songo.
Outra notícia, de 29 Novembro de 2004 fala “das crenças no feiticismo e no fanatismo religioso, nunca antes vistos na sociedade angolana, (que) têm estado na base do elevado índice de casos de violência contra os menores. (...)”