800 anos da língua portuguesa
O portungolano como expressão da bantulusofonia
Nós, angolanos, herdamos duas coisas incontornáveis do Encontro de Civilizações iniciado neste território em 1484, com a chegada de Diogo Cão, navegador português, à foz do rio Nzadi ( Zaire) onde plantou uma árvore de pedra, chamada padrão.
A primeira é a língua portuguesa. A segunda é o mapa quase quadrado de um país, onde cabemos povos de diferentes palavras bantu.
Um escritor angolano gosta de referir- se à língua de Agostinho Neto, Saramago, Bonga e de Zeca Afonso como um troféu que conquistámos cm a independência. Um troféu pode ser um espólio de guerra – da luta de libertação – mas pode ser também um reconhecimento pelo valor mostrado em alguma empreitada heróica ou esforçada. Somos donos e senhores dessa conquista ou dessa herança dos nossos antepassados, pois que, não foram só portugueses os que aqui a vieram falando ao longo de 500 anos. Também falou portuguêskimbundo a nossa Rainha Njinga Mbandi, assim como falou português- umbundo o rei Ekuiki I, e assim falou português-oshikwanhama e o Rei Mandume. Por isso é que o português falado hoje em Angola é um português batucado. Abrimos demais as vogais. Falamos e choramos quase sempre em voz alta.
Com a língua portuguesa veio uma carrada gostosa de palavras, como tremoço e canela e açafrão das índias, barril cheio de vinho palheto, chouriço, queijo a cheirar a chulé, batata-rena e bacalhau ao alho, que é só uma das mil formas de o preparar, vieram outras palavras menos gostosas como canhão e bacamarte, assim nós inventámos o kanhangulo para fazer frente ao bacamarte e criámos a palavra musseque para ficar perto da palavra fábrica e da palavra muito alta que é arranha- céu. Na língua portuguesa dizemos agora as palavras sofisticadas do progresso, como centralidade do Kilamba, catamarã, vias estruturantes. Estas são as do discurso oficial.
Esta, em que vos escrevo, é a mesma língua na qual D. Afonso II de Portugal, em 27 de Junho de 1214, escreveu o seu testamento « En’o nome de Deus. Eu rei don Afonso pela gracia de Deus rei de Portugal, seendo sano e saluo, tem( en) te o dia de
mia morte a saude de mia alma e a proe de mia molier reina dona Vrr( aca) e de meus filios e de meus uassalos(...) »
É a mesma e não é. Do arcaico, guarda a saudade dos navegadores que a trouxeram, com escorbuto e terços de rezar, mas hoje é uma mesma-outra língua que quero designar como portungolano (nosso troféu ou herança), a naturalíssima expressão bantulusófona de um processo de transmutação linguística que, um dia, também com as in luências da francofonia fronteirça e do carioca do Rio de Janeiro, nos leva hoje, a escrever “daqui à 100 metros”, ou “ali tem cinco pássaro” (sem ‘s’, evidentemente) que “é prá mim falá´” neste nosso diálogo transcultural aqui na Lua.
E agora mesmo, em Luanda, a capital de Angola, os jovens que cantam e dançam o kuduru e os rapazes que dormem nas ruas sem saberem bem porquê falam um português que já não se lembra do kimbundo, mas que é tecido de luandensidades linguísticas de uma resistência à urbanidade que os enxotou do seu veículo de crescimento betuminoso. Bem ouvimos as nossas zun- gueiras darem bué de maçada nos fiscais, xé!, os madíé já chegaram!, arreió, arreió (para dizer que o preço baixou), ou está passá feijão, é feijão frade, é feijão espera- cunhado, é feijão catarino, está passá feijão!, pela boca do gramofone chinês a pilhas.
Mas é também no discurso oficial que ouvimos dizer “contribuir no desenvolvimento”, tão repetida expressão em que o verbo perde a preposição “para” que lhe fora destinada pela lei da língua. Como esta mudança, há bastantes outras, a lembrar- nos que toda a língua tem transformações, ou melhor, evoluções ( Darwin), mas tem sempre uma gramática que lhe impõe regras.
A verdade final é que um troféu ou herança representa sempre um valor, um recurso que, no caso da língua, é vital para a nossa unidade nacional e para nos comunicarmos com o universo. Por isso, não somos assim tão livres de fazer com ela tudo aquilo que nos der na real gana. É urgente que a Escola angolana dê aos seus alunos bons professores com o português bem afi(n)ado na ponta da língua.