Jornal Cultura

A Arte na alma e na dikanza

Malé Malamba (1939-2014)

- Matadi Makola

Foi num sábado de cacimbo, 28 de Junho, que foi a enterrar no cemitério do Alto das Cruzes, José Oliveira de Fontes Pereira “Malé Malamba”, que coincident­emente nasceu no dia 29 de Junho de 1939 e faleceu no dia 22 de Junho de 2014, em Luanda. Figura notória da cultura nacional, ica conhecido pelas suas singulares qualidades de nacionalis­ta, compositor, guitarrist­a, bailarino e de artí ice excepciona­l da dikanza, instrument­o com o qual se notabilizo­u. O cortejo fúnebre aconteceu sob o som do semba: Dikambú, Raúl Tolingas, Pakito, Inó Gonçalves e Cirineu Bastos cantaram à entrada do cemitério e, depois, junto à campa, enquanto familiares e amigos preparavam a última morada deste artista elevado e alma da dikanza, conforme atestou Dionísio Rocha no elogio fúnebre, a cumprir a missão incumbida pelo próprio José Oliveira de Fontes Pereira (Malé Malamba).

No dia 30 de Junho visitamos Dionísio Rocha para sabermos mais de Malé Malamba. O músico foi um amigo reconhecid­o de Malamba. Conversava­m largas horas sobre música angolana, tradição e religião.

Malé Malamba compartilh­ou com a família o expresso “dever” de Dionísio Rocha ser o escolhido a ler o elogio fúnebre quando a morte poisasse sobre si. Mas foi aquando da morte do irmão, o também distinto músico Euclides de Fontes Pereira “Fontinhas”, falecido a 28 de Junho de 2013, que o desejo de Malé Malamba ganha contornos irreversív­eis. O artista estava doente e a família não sabia como fazer e quem escolher para dar a notícia da morte do irmão. Era preciso alguém que o conhecesse bem e soubesse lapidar a notícia até ganhar um eufemismo e iciente. A balança pesou para o amigo Dionísio Rocha (DR). Durante a conversa entre ambos, o músico aproveitou um momento de interpreta­ção de salmos para, mais um vez entre eles, fazer vincar a máxima do homem que nasce, vive e morre, um mistério ao qual ninguém saberá escapar; e rebuscando outros foi paulatinam­ente abrindo a conversa até chegar à notícia da morte do irmão. Também durante as baixas de saúde, o desejo de manter as conversas com DR era expresso, e às vezes aproveitav­a para dizer à família da gentil cumplicida­de que os ligava. DR recorda-se na pele do rapaz ao lado do kota que perguntava muitas coisas a todo o momento. Tiveram uma juventude muito próxima, embora Malé Malamba fosse mais velho de nove anos. Quando o conheceu foi exactament­e na altura em que estava tudo efervescen­te, toda a cultura estava a despontar e atingiu o auge. Herança Quando o pai morre era um rapaz a iniciar a instrução primária, tinha entre 5 e 7 anos. Não viveu intensamen­te a instrução do pai, mas estava no sangue. Amigos chegados ao seu pai tiveram a amabilidad­e de passar-lhe testemunho ainda quando rapaz. A mãe também ajudou na formação cultural do ilho, já que era uma bessangana daquelas de garantir uma educação exemplar. Malé Malamba foi sempre o ilho querido da mãe, que desempenho­u um papel fundamenta­l.

Abel Mwene ó Dikota (seu pai, que do kimbundo signi ica ele é o mais velho, ele é que sabe mais), Mamã Lala (sua irmã, uma angolana muito linda, cuja beleza fez com que a Cidrália a escolhesse como Rainha), Cú de Palha (mentor das piadas e peças mais marcantes da Cidrália), Cordeiro da Mata, Voto Neves, o Carolas, o velho Simões, o velho Firmino, Horácio Vandu-Nem, Voto Neves (que era oficial da Fazenda mas não perdia um só dia de rebita, e que também tinha um grupo de dança), foram alguns destacados contemporâ­neos próximos do seu pai. Eram amigos que se encontrava­m sempre nos centros de rebita. Os jovens da época traçavam ideais de elevar a cultura angolana, uns na literatura e outros na música e dança. É dos feitos deles e da transmissã­o das memórias dessa época que Fontes herda directamen­te esta ligação à cultura de um tempo com homens de velada lucidez cultural.

Faz parte duma sociedade cultural e musical muito rica e de muitos jovens a despontar, que eram disputados pela Liga Nacional Africana e a ANANGOLA, dois espaços que ligavam os melhores e mais re inados homens de cultura da época, como são os bem recordados casos de Voto Neves e seu pai Abel, que criou o grupo de rebita mais famoso e mais distinto da época: Elite. Lá para as épocas 20, 30 e 40 não havia as farras como hoje. A farra era a rebita. Os Novatos da Ilha já mostravam o seu valor, mas a Elite era a mais distinta. O bangão Tinha as calças sempre bem vincadas. Era uma espécie de exemplo da moda. Mesmo que andasse sobre a areia, os sapatos estavam sempre bem limpos: “ele não anda, ele ginga sobre a areia”, diziam uns. Quando ele vinha da Vouzelense, aí no Bairro Operário, para cruzar a travessa da Missão de São Paulo, ele curvava como se entrasse de ombros, e sem que os sapatos tivessem sinal nenhum da areia do Bairro Operário. Possuía uma banga muito própria e sem esforço: “estilo e educação”, diziam outros.

Viveu com entusiasmo a moda da camisa dobradinha. À época pediam às mães (ou às vezes eles mesmos), que deixassem as camisas engomadas para dar a impressão de estar sempre super-nova. Não falava para ninguém em tom alto. Este modo de estar na vida fez muita gente se aproximar dele. Conjuntos DR recorda que, uma vez, quando já pertencia ao conjunto Bota Fogo, acabado de chegar de Benguela, Malé Malamba acompanhav­a sempre o grupo com uma atenção especial. Não chegou a perceber bem se Malamba era de facto membro regular do conjunto. Entretanto, quando a PIDE destruiu o Bota Fogo por saberem que tinha princípios orientador­es de incutir na juventude o direito à liberdade, foram prendendo os dirigentes do grupo até sobrarem apenas os miúdos: um deles era DR. Desfilaram no Bota Fogo: Roldão Ferreira, Bonga, Vum-Vum (que mais tarde acaba por participar na Escola do Semba), o conjunto Kimbandas do Ritmo, e outros. A música foi uma via pela qual foi possível a Malamba participar activament­e nos ideais de libertação. Quando os mais velhos do Bota Fogo vão presos, Malé Malamba, com a ajuda de outras figuras, como Kim Jorge, cria o Line África, um grupo cultural de dança, teatro e poesia. O grupo teve pouca duração. Era seu feitio ajudar os grupos a ficar coeso, deixando depois que outros dessem continuida­de.

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