O exorcismo, CONTO de António Gonçalves
“Me abrem, me abrem, me abrem… Será que esta cerveja fui ganhar na vida? Esta gasosa será que me dormiram? Por quê que o meu negócio num anda? Me abrem, me abrem, me abrem…”
Era a Anita que xingava. Tratava-se de um ritual exorcista que praticava quando o negócio caía em saco roto.
Eram sete horas em ponto e a velha Mariana, quatro casas em frente, já tinha a casa abarrotada. Na residência desta mutudi, a maior parte dos fregueses eram operários, e já lá estavam a degustar o vinho palheto, o kaporroto e aquissângua com a respectiva cola e gengibre. Assim era o museke àquela hora. O peixe frito no óleo de palma com bombó,mandioca ou batata doce assada e molho de tomate era o desjejum daquela gente humilde, o mata-bicho como eles próprios chamavam. E, diariamente, lá estavam eles em busca do sustento para os ilhos, apesar da miséria em que vegetavam.
Anita teve uma infância amarfanhada pelas intempéries da vida. Tudo começou com o im da existência paterna. Na altura, tinha ela sete cacimbos e o irmão maior dez. Sua mãe, dona Madalena, depois da perda do marido, passou a dedicar-se à venda de peixe. Comprava grandes quantidades em caixas que posteriormente revendia às retalhistas oriundas dos vários mercados de Luanda.
Sua mãe prosperava vertiginosamente. Começaram a aparecer vários pretendentes pois, para além do dinheiro, ainda transpirava uma beleza cativante. Aceitou ter um novo parceiro.
Certo dia, depois de ter investido uma fortuna num carregamento, constatou que todo o produto havia sido surripiado e a negrura roubou-lhe o sorriso.
Para liquidar as dívidascontraídas a pessoas singulares, teve que vender a casa e, em consequência, suportar o inferno do inquilinato.
O padrasto, tio Joaquim, ao veri icar que as mordomias minguavam, abandonou a sua mãe com um bebé.
Para amputar a dor que lhe corroía a alma, dona Madalena apaixonou-se pelo álcool e tudo foi icando cada vez mais negro. O senhorio alegou que precisava da casa já que havia di iculdades no pagamento das rendas e…quando menos esperavam, foram postos na rua.
Passaram a viver da caridade pública, pedindo esmolas, dormindo ao relento, em qualquer esquina, ali onde a bebedeira se apoderasse da mãe. Até que num feio dia, numa sexta-feira treze, a mãe foi atropelada durantea noite, quando se encontrava com a consciência afogada em álcool. Só assim a família apareceu; fez-se o óbito na casa da tia Josefa, irmã da falecida.
Trinta dias depois, com as primeiras cinzas realizadas, a família reuniuse para decidir sobre o seu e o futuro dos irmãos.
Chico, o mais velho, icou a viver com a tia, onde se realizou o óbito. A bebé deram-naà responsabilidade do pai, já que este ainda se encontrava vivo, apesar de na companhia de outra esposa. Ela foi entregue aos cuidados da madrinha.
Lá, cedo, foi sendo explorada: primeiro vendia gelado de múcua, à porta de uma escola. Depois, teve que vender pão, e mais tarde, água em saquinhos. Na escola em que estudava, não foi para além da terceira classe. A madrinha, só de vez em quandoé que se dignava comprar-lhe vestimentas. Geralmente, brindava-lhe roupas por ela usadas.
Num belo dia, de visita a casa de uma prima afastada, foi tão bem acolhida que resolveu por lá icar. Os meses foram caminhando e os anos também. Aos dezassete foi engravidada por um polícia com quem namorava e os dois resolveram casar.
No princípio, foi um arco-íris. Davam-se extremamente bem, e izeram quatro ilhos, a primeira menina é falecida: duas crianças já grandinhas com quem brincava, atiraram-naa um tanque cheio de água e faleceu. Foi uma desgraça, óbito e luto. E, inconformados, arredaram pé do bairro.
A segunda menina começou com febre muito alta e acabou por falecer no dia seguinte: era febre tifóide!
Só tinham agora a menina de quatros anos e o bebé de doze atribulados meses. Anita tinha saudades do tempo em que era a única do João Manuel. Tempos de ternos afectos, mimos in indos e do dinheiro sem conta que ele deixava para as despesas do lar.
E tudo mudou. João Manuel engravidou uma mocinha, uma “catorzinha”. Só que a família desta não gostou da brincadeira. Agiu, e ele teve que assumir a responsabilidade. Não encontrou outra solução senão a de “colocála” na casa de seus pais. E, como era da praxe, “o novo é que era bom” o polícia só prestava atenção à Antonieta. Para ela, João Manuel deixava apenas uns míseros centavos que nem para uma refeição chegavam; além de que, o “Chui” sumia durante dois ou três dias, icando assim a ver navios.
Como Anita não era amiga da preguiça, montou um negócio em casa: venda de bebidas.
O povo do museke bebe que se farta para esquecer a pobreza. Só, que neste dia, o negócio não tinha pernas para andar e ela com voz pesarosa, canta repetidamente o ritual:
Quanta desgraça para Anita! E quanto tempo mais suportará ela, essa vida de cão?
Luanda, Agosto de 1998