Jornal Cultura

Lições de vida na filosofia popular

- Filipe Zau

Habituámo-nos, nos dias de hoje, a ver a Educação apenas como um processo sistematiz­ado, realizado em instituiçõ­es públicase privadas, onde, para além da instrução (mais voltada para a aquisição de conhecimen­tos de âmbito escolar ou académico), também se associa, no contexto do currículo oculto e de forma quase residual, o trabalho educativov­oltado para a aquisição de hábitos e valores.

A iloso ia tradiciona­l ao recolher hábitos e costumes que passam de gerações mais adultas para as mais jovens, não deixa de estar ligada a uma iloso ia de educação, que, através de processos de socializaç­ão, mantém a identidade cultural e a coesão do grupo, mediante a recitação, entre outras manifestaç­ões, de provérbios, adivinhas, fábulas e, até, de uma escrita ideográ ica, com ocorre em Cabinda.

No livro “Filoso ia Tradiciona­l dos Cabindas”, de José Martins Vaz, editado, em 1970, pela Agência- Geral do Ultramar, surge o provérbio “Manga Mena: menu”, o que traduzido à letra signi ica “o valor da boca: os dentes”, que traz-nos o sentido de que “o valor da família está no conjunto de todos os seus membros”, correspond­ente ao provérbio português “Três irmãos, três fortalezas”.

Estes três pilares remete-nos para Raphael Batsikama ba Mampuya ma Ndwala, no seu livro “Voici les Jagas ou l’histoire d’un peuple parrecide bien malgré lui”, citado pela antropólog­a angolana Ana Maria de Oliveira no seu livro“Elementos Simbólicos do Kibanguism­o”. Nele é relatado a estória tradiciona­l da origem do reino do Kongo, através de “Vit’a Nimi”, “Mpanzu’a Nimi”e “Lukeni Lwa Nimi”. Estestrês irmãos constituem a base da sociedade congolesa, ilhos de “Nzinga”, ilha de “Nkuvu”, que foi casada com “Nimi” e teve dois rapazes e uma menina.

“Vita Nimi”, o ilho mais velho, a quem se chamou “Ne Nvunda” e que era também conhecido por “Nsaku”, quesigni ica aquele que traça os destinos do Congo. Daí que deste ramo tenha surgido uma descendênc­ia de diplomatas, pois sempre que os “manikongo” tivessem necessidad­e de enviar embaixadas ou missões ao estrangeir­o, escolhiam individual­idades do ramo “Kisaku”.

O segundo ilho, “Mpanzu’a Nimi”,teve uma descendênc­ia numerosa. Era por natureza guerreiro, também um excelente agricultor e um bom conhecedor de minerais.

“Lukeni Lwa Nimi”, a ilha,foi a mais di ícil de criar. Daí ser também conhecida por “Vuzi”, ou seja, aquela que cria problemas. Era muito bela e desprezava quase tudo o que comia, excepto carne. Casou-se e teve ilhos, que eram também muito admirados, quer pela sua beleza, quer pelo seu carácter.

Cada um destes três ilhos de “Nzinga” e de “Nimi” recebeu uma parcela do território do reino do Kongo, que correspond­e a cada uma das três áreas geogra icamente distintas e bem diferencia­das do ponto de vista social e económico e que, administra­tivamente, se encontram associadas a cada um dos descendent­es do “manikongo”: “Kongo-dya-Mpangala”; “Kongodya-Mulanza”; e “Kongo-dya-Mpanzu”, cujo centro de convergênc­ia dessas três partes é designado por “Kongo-dyaNza”.A fronteira de cada área geográ ica era delimitada com a plantação de uma árvore de nome “Nsanda”, que simboliza a vitalidade e a irmeza da cultura tradiconal herdado do reino do Kongo.

Segundo o relato de Ana Maria de Oliveira, “são os três troncos de termiteira, as três pedras ao fogo que suportam a panela, o que em sentido igurado signi ica: a lareira, a casa materna e, por analogia, o lugar onde se cria, onde se decide, o centro onde tudo começou.” Daí que ‘Makukua Matatu Malamb’e Kongo’ pode, em princípio, ser aceite como “as três lareiras, as três pedras base, as três partes, a trindade que formava o antigo reino do Kongo.”

Por seu turno, o livro “Sabedoria Cabinda; Símbolos e Provérbios” do Pe Joaquim Martins, refere-se às terras do Enclave como sendo habitadas por povos “bantu”, do grupo etnolinguí­stico Bakongo, provenient­es do antigo reino do Kongo e composto por três sub-grupos: o “Bacongo” (subgrupo), por ter sido governado por um “Makongo”, do qual faz parte o município de “Kakongo” (Lândana), cuja sede é na área de “Tandu-Zinze”; o “Bauoio”, com sede em “Ngoio”, no alto da região do Ntó, na estrada para o Iema, fronteira a sul com o Congo-Kinshasa; o “Balinge”, da terra do “Ndinge”; o “Bavili”, o “Basundi”, o “Baluangu”…Com a excepção do “Balinde”, os outros sub-grupos têm rami icações no Congo-Brazaville e no Congo-Kinshasa.

A iloso ia tradiciona­l em Cabinda encontra-se escrita em testo de panela, esteiras, cabaças de vinho de palma, bandeiras de chefes, “sangas” – potes – para água, em túmulos, pentes, etc. Nas tampas de panela, tal como nas esteiras, encontra-se o que se refere mais particular­mente à vida familiar e doméstica: relações dos membros de família, relações entre marido e mulher, o que deve ser o homem, a mulher, a rapariga...

Daí que, outrora, nas bodas de casamento, a família da noiva cobria as panelas de comida, que eram enviadas à família do noivo, com testos cheios de símbolos adequados ao acto de mostrar ao noivo como quer que a noiva seja tratada e, viceversa, nas tampas das panelas do noivo para a família da noiva. Os noivos com di iculdades em decifrar esta escrita simbólica, eram apoiados pelos “mais velhos”.

Na vida de casados, a mulher que não quisesse falar com o marido, acusando-o de maus tratos, mandava fazer um testo com um símbolo adequado, cobrindo com ele a panela da refeição do marido, icando logo este a saber o que a esposa pretendia e de que o acusava. Se o testo tivesse, por exemplo, um pato ou galinha com a cabeça voltada para trás, queria dizer ao marido que ele a tratava mal e proporcion­ar-lhe a seguinte interpreta­ção: “pensas que não posso voltar para onde vim, para casa dos meus pais? Trata-me bem se queres!”

Um outro exemplo, para o caso do testo ter uma tartaruga signi icaria: “quero andar contigo, não quero que vás só mas sim juntos, como junto anda a tartaruga com a sua carcaça…!”. Para o caso do marido oferecer à esposa uma tampa de panela com um rouxinol, indicar-lhe-ia claramente que queria muito mais trabalho e muito menos cantiga.

Para terminar, deixo uma lição da iloso ia popular Cabinda: “Bókuta, ólio like um nhitu aku: Monti kani lingana, ueki lósuka”. Traduzido à letra quer dizer: “Cochichas, o que está no teu corpo (o que toca por ti mesmo): Contudo, se se trata dos outros, falas alto (até berras)”. A lição de vida é a seguinte: “Dos nossos defeitos não falamos nem gostamos que falem. Mas levantamos bem a voz para falar dos outros.”Um provérbio antigo com uma mensagem pedagógica para os dias de hoje, através de uma escrita ideográ ica, que faz com que cultura dos africanos, não seja toda ela considerad­a ágrafa.

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