ORATURA po i a em dias de car ncia
pedida. Fazia questão de nos regalar com duas galinhas, dois quilos de feijão e alguma batata-doce. E agora, o que havíamos de fazer? Receber, ou não?
Uma comissão reuniu-se no cantinho, tendo como interlocutora a maisvelha do grupo. Primeiro, era-nos enorme a empatia pelo sofrimento, não fazendo grande sentido despenderem do já tão pouco. Segundo, o código de conduta proibia-nos, pois não estávamos ali em visita, mas a trabalhar sob pagamento. O Soba, que sabia ao mesmo tempo ser cordato mas intransigente, considerou de improcedente a nossa visão. Não é «nosso», sublinhava, terminar uma visita sem «okupokiwa», símbolo de hospitalidade!
Como o leitor terá já percebido, cá estamos com mais um estudo, outra vivência para abordarmos aspectos da tradição oral do grupo etnolinguístico Ovimbundu. O verbo «okupoka» (regalar) ou «okupokiwa» (ser regalado) refere-se a bens alimentares para a boa hospitalidade, genericamente servidos como refeição, donde se destacam a «ocisangwa» (bebida feita à base de farinha ou rolão de milho, conhecida pelo seu aportuguesado quissângua) e a galinha. A norma do bom acolhimento assenta no adágio de que «ukombe elende; ndopo yaco lipita» (o visitante é nuvem; passa logo).
Quanto às regras de confecção, é certo que cada grupo entre os Bantu do território de Angola tem particularidades próprias. No essencial, a galinha é guisada e servida com todas as partes que a integram, reservando-se ao visitante a primazia de abrir a mesa e escolher das porções que bem entender. Não devem faltar o coração, as tripas, as coxas, as patas, as asas, a moela e por im o rabinho. Dado o risco de o visitante levar à risca o direito que lhe cabe, e daí apossar-se da tigela inteira, outras iguarias não tão especiais complementam a ementa para os an itriões, tais como o feijão e as verduras. Daí que esta praxe exija dos an itriões uma preparação das crianças, por não ser propriamente frequente para consumo o abate de animais de criação.
Julgo não estar muito longe da verdade se a irmar que os Ovimbundu levam muito mesmo a mal qualquer gesto passível de ser interpretado como desprezo ou colocar alguém na condição de mendigo. É óbvio que nem tudo é linear. A vida na cidade é cara, aliás bem eloquente é o aforismo: «ohombo yilya opapelo, omunu olya olombongo» (cabrito come papel, pessoa come dinheiro). Tal não é, porém, a herança ancestral de povo camponês, criador de gado e caçador, como dá a entender a máxima «casupa oco catenlã» (se sobrar, é porque satisfez), ou ainda «nda cipwa, cipwe; ocipa ha nanga ko» (se gastar, que gaste; pele de animal não é tecido de algodão).
Tão sagrada é a boa hospitalidade que, ainda hoje, é quase uma questão de arte o papel de bom visitante lá onde os an itriões estejam conglomerados por laços familiares ou de forte a inidade. Como se desenvencilharia o caro leitor se cinco lares, na razão de uma galinha por cada, lhe izessem chegar à mesa o prato? Ora, o segredo está em comer um bocado de cada lar. De outro modo, ica a mágoa de quem vir a comida rejeitada.
Regressemos, pois, ao dilema do Soba grande de uma aldeia de refugiados em extrema carência mas que exigia que aceitássemos a oferta de bom hospitaleiro. Ora, entre a ética positiva de base ocidental e a costumeira africana, onde os anciãos são por vocação uma entidade, tivemos de arranjar um meio-termo. Não era prudente afrontar uma autoridade tradicional, quando se iria caminhar cerca de dez quilómetros em mata cerrada. Foi então que juntamos o que sobrou da nossa logística, se bem me lembro uma lata de leite, grade de gasosa, uns cinco quilos arroz, massa, óleo alimentar, sal, sabão, peixe seco, entre outros, que não icaria por menos dez mil kwanzas.
Para terminar a re lexão de hoje, diríamos que «okupoka» é um gesto simbólico de boa hospitalidade, geralmente ligado a géneros alimentares, que tanto podem ser consumidos durante a estadia, ou levados como lembrança.
Luanda, 12 Julho 2014