Jornal Cultura

Manuel Rui Ementrevis­ta

- Isaquiel Cori

Autor da letra do hino da República de Angola, Manuel Rui é um dos escritores mais prolíferos e versáteis da sua geração. Ponti icam na sua já vasta obra a novela "Quem me dera ser onda", o romance "Rioseco" e a série de cadernos poéticos "Onze Poemas em Novembro". Este ano publicou, entre outras obras, o romance "A Trança" e o livro de contos "Quitandeir­as e aviões". Na entrevista que se segue, Manuel Rui revela aos leitores do jornal Cultura a poética subjacente à sua criação iccional, comenta situações da realidade social e histórica do país e fala de aspectos até aqui pouco conhecidos da sua biogra ia. A dado momento o escritor a irma: "falo alto e grosso: tenho uma maneira minha de fazer icção".

Jornal Cultura – O que o exercício da escrita representa para si? Gozo? Angústia? Refúgio?

Manuel Rui

– Representa apenas tudo. O favo, o voo da abelha e o mel. Escreve-se porque primeiro se gosta de escrever, em segundo porque se sabe, em terceiro porque se pretende um relacionam­ento com quem nos lê. É uma espécie de relação quase erótica: escrevo, tenho o prazer de escrever e depois quero que me devolvam esse prazer através da leitura. O mesmo que palmas e tambores para um contador oral, um griô. Obviamente, pode-se escrever por encomenda, por necessidad­e, por mil e uma razões, o importante é que se tenha talento. Os grandes monumentos, as grandes obras de arte, foram encomendad­as e nem por isso deixam de ser obras de arte. O que está em causa sempre para se escrever é o talento, a opção de como se escreve, porque se sabe que essa opção é nossa e porque se sabe escrever. Eu diria, como alguém disse, há muita gente que escreve e alguns escritores. Tem uma coisa lá no fundo do pôr-do-sol: gente com talento, por aí perdida, não sabendo ler nem escrever… e às vezes vendendo jornais…

JC – O talento, sobretudo no caso dos que escrevem icção, tem de ser acompanhad­o com auto-disciplina, auto-organizaçã­o?

MR–

Isso é outro ângulo. Se me fizerem a encomenda de um texto, um ensaio, para uma revista, de borla por paixão ou a pagar, eu escrevo na hora. Não tenho a autodiscip­lina de escrever todos os dias, infelizmen­te. Escrevo quando tenho mesmo vontade e prazer de escrever. Repare nesse pormenor: eu escrevi o romance “A Trança” e quando acabei, de alegria, escrevi um poema dedicado ao livro; é uma espécie de êxtase daquilo que havia feito.

JC – A partir do momento em que começa a escrever, o livro já pré-existe na sua cabeça?

MR–

Há várias maneiras de eu começar. Numa, o livro já está todo na cabeça mas depois pode sofrer alterações. Já houve personagen­s minhas que tinham um percurso de inido, começaram a libertar-se desse percurso, a soltar-se, a fazerem o que queriam, que eu tive que as matar. As personagen­s começam a libertar-se, o livro começa a ser ele próprio, a ter a sua própria existência como se não fosse feito por mim. Há outros livros que começo a escrever sem saber aonde vão acabar. O “Quem me dera ser onda” não tinha estória, ela foi andando por si, foi-se soltando. A mundividên­cia era tal, tinha tanta coisa à volta que foi uma espécie de chuvada que fez aumentar um caudal de um rio que eu ainda não sabia qual era a foz. E, verdadeira­mente, não teve foz, porque o livro é aberto.

JC – “Quem me dera ser onda” captou uma vibrante realidade social, que hoje já se pode considerar histórica. Olhando à volta dá para pensar que aquela realidade social continua aí, ou tende a reemergir?

MR

– Penso que não é ou nem é tanto isso. É um canto de esperança, é a visão de um futuro que se avizinha com classes dominantes, como é o caso do cipaio terrível que maltrata os ilhos, hostiliza a mulher por causa da carne (a metáfora da riqueza). Por outro lado, é o princípio de qualquer coisa que nos marcou, que foi a ideologia do marxismo-leninismo, que a maioria não sabia o que era mas se tinha a ver com liberdade, igualdade, já era qualquer coisa de bom. Parecia que se pretendia uma sociedade meritocrát­ica. Depois vai chegar o momento, depois do “Quem me dera ser onda”, em que se deitou pela janela fora a ideologia marxista mas icou-se com algumas esquizofre­nias que vieram do Leste, de tipo stalinista: fenómenos como a DISA, a perseguiçã­o política, os editoriais permanente­s na Rádio Nacional, etc., a que “Quem me dera ser onda” subreptici­amente faz referência quando o porco é obrigado a ouvir tudo o que a Rádio Nacional dá, porque o patrão lhe colocou os auscultado­res nos ouvidos. O livro inicialmen­te não conseguia sair e foi posto num concurso (Prémio Sagrada Esperança) com aquelas regras do envelope fechado com a identidade do autor. Teve outros tropeções até conseguir ser publicado com a imposição de que tinha que vir com um prefácio a dizer que o livro era contra a pequena burguesia. Viviase esse absurdo, ninguém se interrogav­a: se havia uma pequena burguesia aonde estava a burguesia?

JC – No seu livro “Crónica de um mujimbo” a questão da DISA parece emergir, mas a novela acaba em suspense, como se fosse continuar num outro livro?

MR–

Continuaçã­o? Estragava a estória. Não pretendo estragar o livro, que não é um seriado nem uma telenovela. Eu jogo muito com o im em aberto. A abordagem não é

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