Jornal Cultura

Poema de Manuel C. Amor

Sinfonia Nocturna 15

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Vi suor e silêncio nas caminhadas à beira das madrugadas Margens de dias feridos e de sonhos corroídos em que os homens abriam caminho por entre espaços a roçar mortos e sussurros dos ainda não mortos E vi espanto e medo no rosto das mulheres que traziam ilhos nas costas e ilhos dentro de si

Ou não traziam ilhos porque simplesmen­te os ilhos já haviam partido E vi jovens a quem a juventude deixou de pertencer Raça pronta para a luta e para morrer mesmo querendo viver Não sei quantos regressara­m aos seus quimbos , às suas sanzalas, embalas, libatas ou diembos cantando a Paz. nem sei quantos repousam em Paz nas savanas, chanas, nos campos de terra vermelha e castanha em sepulturas toscamente cavadas por este vasto espaço sagrado. Mas sei, Pátria querida Pátria amada se nos fosse possível juntar todo o sangue em ti vertido O sangue de todos os teus ilhos Mbundus, Tchokwes Kimbundos, Ovibundos, Kwanhamas, Kikongos teríamos um Lago que nem Dilolo E o instinto dizia-me para icar ali Mas a respiração arfante dos que ainda respiravam E a não respiração dos que já não respiravam era um peso que me esmagava e na escuridão sob o nevoeiro, vi granadas a explodir nas suas nuvens de fumo branco sujo ouvi o silvo de balas das metralhado­ras zunir no ar o som dos diferentes projecteis numa metralha fantasmagó­rica como se fosse a música de uma marcha fúnebre dos heróis de ambos os lados da contenda e respirei o fumo sufocante das batalhas mais intensas dos cercos mais dolorosos ... Mas num atroz desprezo acampados em luxuosas suites, muitos senhores envergando bons fatos de corte inglês, gravatas de seda chinesa, ostensivos anéis e relógios de ouro reuniam-se à volta de sumptuosas mesas, faziam tinir copos com o bons vinhos do Alentejo, Douro, e champanhe francês negociavam a paz uma paz que para eles, não era bem vinda

AH! Pátria minha: Sim eu Sei que desaparece­u a tragédia da guerra. Que pelas madrugadas resplandec­entes da humidade do cacimbo E ao longo do sulco dos caminhos e no leito das dambas Re lorescem espigas de milho e mandioquei­ras Renasce o pão Que as crianças, ainda que com a fome batendo fundo, e os seus pés ainda descalços e gretados Já soltam estrondosa­s gargalhada­s das suas bocas cariadas Libertam luz de esperança dos seus olhos Onde ontem só lágrimas e medo cabiam. E brincam nos terreiros de poeira das escolas ainda rudimentar­es. São os piôs, os continuado­res, os obreiros construtor­es Do futuro ainda incerto na forma mas certo no tempo Sim eu sei ainda tem muita dor para passar Muita ferida para cicatrizar muita cinza de óbito para varrer mas os contornos desse imenso e obscuro túnel já passou! Estão sepultados para sempre E é tempo meu irmão de deixar para a retaguarda os nossos machados e as nossas azagaias de guerra Esquecer desavenças vencer contradiçõ­es aceitar as diferenças É tempo de celebrar o novo ciclo libertado do medo de ir à lavra de vigiar a rebentação dos pastos tempo de sermos nós mesmos dignos herdeiros de Kiluanji, Njinga Mbandi, Mandumbe, N’gola, Bula Matadi, Ekwikwi II ilhos de nossa mãe Luégi e de nossa mamã da Muxima.

Junho 2014

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