Mestre Américo & Ohandanji
(breve testemunho)
Émesmo um hábito. Manuscrever todas as criações e textos literários que publicamos. São muito raras as vezes em que o que digitamos não é antecipado de um manuscrito, tal como agora, caligrafado com a nossa (con)sagrada canhota mão.
Os manuscritos são, também, a razão de uma incontável e respeitada colecção de lápis, lapiseiras e canetas que, inesperada e desinteressadamente, iniciamos desde há mais de meio século em razão das nossas práticas artístico-literárias. E antes que nos interroguem sobre a razão deste intróito, num texto em que nos propusemos testemunhar sobre um mestre, camarada e amigo – agora navegando nas águas do além – vamos descortinar o motivo.
Sentados na escrivaninha e entre as paredes do nosso modesto escritório, como sempre com o “papelsório” desarrumado, encaramos um empoeirado estojo portando uma “sheffer” que em tempos de boémia recebemos como oferta do Américo Gonçalves, na presença de um tal de André Domingos Passy que também já passou… lá pelas bandas do Casuno num restaurante local cujo nome aqui e agora não é chamado ou mesmo – diplomático-literariamente! – pre iro olvidar. Passaramse já cerca de duas décadas de tempo como diriam os nossos irmãos e amigos do Índico em terras de Malangatana, Craveirinha e outros misteriosos magalas!
Agora é da caneta deste estojo (ainda com o timbre da petrolífera francesa em que Américo actuou como adido promovendo a cultura angolana), que nos servimos para alinhavar este singelo texto em jeito de homenagem ao dinâmico agente cultural, ao cronista de pena tão bem agridoce e a iada, ao autêntico observador e crítico social particularmente preocupado com a difusão dos mais profundos problemas culturais africanos, ao cidadão que um dia ousamos considerar, nestas mesmas páginas, o GENERAL do jornalismo cultural angolano do pós-independência.
Testemunhando, debitamos aqui um curto episódio da “verdadeira” História da literatura angolana. Quando em 1983 rompemos com a instituição(BJL), estávamos inconformados com o rumo do discurso “cantalutista” que perseguia e tomava o que publicavam os jovens escritores e amantes da literatura maioritariamente enquadrados na Brigada Jovem de Literatura em Luanda. Optamos pela preparação e publicação de um MANIFESTO Estético-Literário que, num domingo de Abril de 1984, viria a apanhar de surpresa toda a sociedade literária na urbe luandense.
Foi de facto uma pedrada no charco, o surgimento do projecto estético-literário do Colectivo de Trabalhos Literários OHANDANJI em torno do qual estávamos (e estamos!) com Luís Kandjimbo, Domingos Ginginha, Aníbal Simões (Baladar) Diniz Kakinda, Joca Paixão e António Panguila, dentre outros confrades, que viriam mais tarde a aderir até pelas amostras das suas práticas literárias.
O Américo era o coordenador/fundador do Vida & Cultura, então Suplemento Cultural do Jornal de Angola. Inesperadamente, dele recebemos toda a atenção, o apoio e uma abertura de invejar, em termos de espaço, na consagrada folha dominical de cultura. Sábado após sábado, estávamos lá na redacção do Jornal, editando, foto-compondo, escolhendo as ilustrações e, com toda a liberdade, montando os fotolitos dos textos que publicávamos ao domingo para a nossa satisfação, fruição e consagração.
O Américo sabia da nossa base instalada num quartito do terceiro andar da antiga residência universitária, na rei Katiavala, onde residia o Kandjimbo e realizámos históricos encontros (alguns dos quais reportados no próprio Jornal de Angola) da nossa tertúlia.
Sugeriu e aconselhou-nos um profundo sigilo nas acções que precederam a publicação do nosso MANIFESTO pois, na altura, ao contrário do que hoje acontece, o segredo era a alma do negócio. No nosso burgo capitalino, a simples opinião era um “caso sério”, e de segurança do Estado. Escasseavam as folhas, os espaços e os palcos culturais. A democracia estava centralizada e, supostamente, caminhávamos rumo ao socialismo.
O Américo esteve sempre connosco e com o Rui Duarte de Carvalho que, igualmente, sem pestanejar, aceitou. Abraçou-nos e foi o nosso suporte intelectualmente consagrado a quem tivemos a oportunidade de entrevistar, também sob proposta dele mesmo (A.G.), para publicamente calar os nossos detractores de então. E outros factos seguiram-se, pois vivíamos num tempo em que queríamos fazer valer as coisas que, como havia dito o Joca com alguma “Paixão”, já dizíamos quando ainda não falávamos. As coisas que agora se repercutem “intensas em timbres cavernosos nos labirintos dos espaços ora descobertos”.
Dolorosamente, é de um cúmplice que vos falo. De um cúmplice da nossa proposta OHANDANJI. E não podemos deixar de relembrar, para o Américo, o que havia num oportuno momento dito o confrade Paixão: “A proposta mantém-se agora com mais vigor do que nunca. Com preocupações de exercitação da escrita em quadrantes vários de experimentação permanente… em busca de um núcleo conteudístico das coisas cá da terra e não só… procurando engravidar a perfeição em luarentas noites de sunguilar sobre os motivos sempre nossos e sempre novos; amassar com as mãos o barro de Talamungongo com as águas do Kwanza, reproduzir no ar o quadro natural gerado na Chela e exposto na Tundavala. Apreciar o membro erecto do homem investido de beleza ali em Kilimanjaro”.
Ao que nos parece, este “manuscrito” já vai longo. Vamos digitá-lo. Mas como fazêlo, sem abordar, ainda que num parágrafo , a coerência redactorial do homem de paz, mestre da vida e telúrico cronista que foi o Américo Gonçalves, também conhecido por Ocirema enquanto tal?
O tempo urge e quiçá mesmo “ruge”. Editorialmente, agora nada mais útil do que pesquisar o legado de Ocirema, reunir e publicar as residentes e resistentes crónicas existentes nas mais distintas e dispersas publicações periódicas angolanas.
Resta-nos então quedar-nos por aqui, derramando nossas absolutas e secas lágrimas sobre o brilho da simples caneta com que agora redigimos e cujo valor simbólico vimos para nós acrescido.
Honestamente inclinamo-nos por não o termos alcançado no momento, mais do que certo, em que o objecto às nossas mãos chegou, qual antecipado prémio de reconhecimento da nossa trajectória literária. Aconteceu há já vinte anos. Agora: “repousa lá no céu eternamente…”, resistindo nós cá na terra sempre tristes e até um dia, caro mestre e amigo caro!