As casuais causas de ser escritor
Por mais que pensasse, com os meus botões, a única saída, era somente uma atitude de respeito, perante eles, desde então. O único ser da minha realidade com que mais se pareciam era o meu avô. Mas que além da barba e cabelos brancos, do caminhar assim devagar e do boné a cobrir apenas o topo da cabeça, eles tinham algo mais, um qualquer segredo dos deuses. Sempre que mergulhasse numa das suas criações, mais assentia aos pareceres do público, resumidos na frase, “os escritores são a camada superior da humanidade".
O tempo passou e o objecto de admiração não, apesar da grande revelação: as palavras - o seu ingrediente secreto. Até este estágio, apenas foi possível eliminar o estereótipo de a escrita estar reservada aos “adultos”. Como corrobora José Saramago, “todos somos escritores, só que alguns escrevem, outros não” . Hoje, produz-se-me um encanto, maior talvez, pela perseverança e alguma genialidade de percorrerem mundos desconhecidos, de se deixarem possuir por vozes alheias à sua pessoa e trazerem das quatro paredes, ou doutro lugar, nem sempre ísico, desde que longe da correria, ideias e utopias fascinantes. Daí a questão central, onde buscam tal motivação? Que ponta de iceberg é essa na qual se agarram, nesse tempestuoso alto-mar que é a vida? É dessas razões que esta humilde re lexão pretende discorrer.
Desde a infância que vemos no mundo algo de prodigioso, sem forma e cheio de possibilidades. Os amigos imaginários, a atribuição de papeis a objectos inanimados são alguns exemplos. Há quem diga que o escritor, é alguém que escolheu continuar a ser criança e é corajoso o su iciente para partilhar os seus sonhos. “[…] todos nós [já] usufruímos do momento divino em que a nossa vida podia ser todas as vidas e o mundo ainda esperava por um destino. […] a esta relação com o mundo informe e caótico. Essa relação, meus amigos, é aquilo que faz mover a escrita, qualquer que seja o continente, qualquer que seja a nação, a língua ou o género literário” . Porém, há razões mais ou menos contundentes, que variam de época e lugar, e estão presentes nesta ou naquela fase deste ou daquele escritor.
Um primeiro motivo do candidato a escritor, tem a ver com os bene ícios económicos que podem advir desse tão estimado o ício. Uma ideia insu lada, em parte, pelas listas de bestsellers que toldam o trabalho e o tempo necessários à produção de uma obra literária de qualidade. A geogra ia, ou seja, a cultura livresca é também uma variável determinante pois, “num país onde a literatura não signi ica grande coisa para a maioria” é inevitável, cedo ou tarde, esbarrar-se no muro da decepção.
Nessa luta contra a natureza corruptível e efémera do ser humano, a literatura é levada em arena para a conquista da imortalidade, aqui, a intenção é dilatar esse resto breve que permeia o nascimento e a morte - a vida. Como se pode ler nas linhas de Saramago [e em dupla homenagem]: "O Gabriel Garcia Marquez dizia que escrevia para que gostassem dele. É possível. É mais exacto dizer que a gente escreve porque não quer morrer. [...]. Já que temos que morrer, que alguma coisa ique. Não é imortalidade, isso seria um disparate; é algum reconhecimento por algum tempo mais" .
O poder da palavra, as nuances dos sons, das imagens ou o prazer na amarra de um bom enredo, às vezes, são o su iciente para captar o entusiasmo pela escrita. Nestes termos, a estética e a beleza do mundo em si, vão representar ao iniciado/escritor, o mais alto ideal na lida com a arte, como o é para Mia Couto: “O que me move é a vocação divina da palavra, que não apenas nomeia mas que inventa e produz encantamento” .
Quantas vezes ouvimos a frase, “este livro mudou a minha vida!”?
Quando tem o livro em mãos, o leitor confronta-se com ideias iluminantes, com mundos extraordinariamente criados, a ponto de questionar a realidade que vive e tomar uma atitude de mudança. Nesta situação o autor vê um de seus objectivos cumpridos, o político, no sentido geral do termo, o de semear ideias, de sugerir conversas sobre um tópico particular da vida individual ou colectiva.
Além do ímpeto para in luenciar o presente, pode também o escritor estar pautado pelo senso de documentar o passado, pela missão de resgatar o legado pessoal, nacional ou mesmo do ser humano planetário. Este é o impulso histórico segundo George Orwell, no seu ensaio " porque escrevo" na obra "Dentro da baleia e outros ensaios".
A despeito das teorias da ciência e da crítica literária, essas divagações proporcionam-me, hoje, uma paz de espírito, no caminho sinuoso de aprendiz de escrever.
Benguela, Julho de 2014
José Saramago, apude, Fernando Gomez Aguilera, JOSÉ SARAMAGO, NAS SUAS PALAVRAS pg 216
Mia Couto, E SE OBAMA FOSSE AFRICANO E OUTROS ENSAIOS, LINGUAS QUE NÃO SABIAMOS QUE SABÍAMOS.
Mário Vargas Llosa, CARTAS A UM JOVEM ROMANCISTA, pg 9 José Saramago, ibidem, pg 219 Mia Couto, ibidem, pg