Jornal Cultura

Em os de hamb d a al nga

- Luciano Canhanga

“Phambu dya kalunga” é uma expressão kimbundu que quer dizer, literalmen­te, “encruzilha­da da morte”. Também se costuma dizer "kanjila kajokota munzonge wa lulu" que signi ica, na língua lusitana, que o ”passarinho queimou e o molho amargou”.

No tempo da mocidade dos meus tios e da minha meninice, era comum ouvir os mais velhos a usarem o "phambu dya kalunga" para se referirem a alguém numa encruzilha­da, com apenas dois caminhos.

Lembro-me de um kota que "encheu uma pinta" e foi caçado pelos primos da mboa, já que ele esquivava sempre que o chamassem a sentar-se à mesa para falar com urbanidade. O manga era refractári­o, outra expressão que saiu da moda linguístic­a, e tanto temia assumir a munzúbya quanto ser "kangado" para a kwemba.

No dia em que os primos da pura mboa que estava pwã o levaram à força para ir assumir o kizangu da gravidez e fazer "os dever na moça", Tito Rafael estava a preparar-se, manhã cedo, para ir trabalhar na alfaiatari­a, no Golfe, vivendo ele no México do Rangel, na Nguimbi, portanto.

O manga, quando ouviu o "com licença" do Zezito, pensou que fosse o seu colega de pro issão e de caminhadas de beco em beco, fugindo dos ODP´s, CPPA´s, FAPLA´s kacimbados, ST's e PCU's. Esses últimos eram os mais "fodidos", porque levavam tanto civis abrangidos para a vida militar, quanto os paramilita­res, os integrante­s de milícias e os militares não dispensado­s dos quartéis. Eram mesmo quem mais rusgavam.

O kamba do meu tiote, estudado minuciosam­ente pelos seus captores e enganado pela semelhança da voz anunciante, foi zangulado e arrastado até ao quarteirão seguinte onde o aguardavam os makotas da família da Ratinha, a wi do cabelo longo, que andou a xaxatar de kaxexe durante ano e meio, sem dizer "te quero de verdade ou de mentira". A expressão "namoro de icar" não existia ainda no vocabulári­o do português luandense.

Tito Rafael, sozinho no meio de mais velhos de respeito, naquele tempo até os malandros eram " ilhos de família", ensaiou dois caminhos: arrastar a conversa e não assumir o dikulu antes que seus parentes fossem ao seu encontro, até porque casa, dinheiro e condições para sustentar a " ilha alheia" e o mubinganu por nascer eram coisas de que ainda não dispunha. A alternativ­a era pedir diligentem­ente licença para ir fazer necessidad­es menores e pôr-se a lume.

No bairro onde nasceu e cresceu, apesar das traquinice­s de uns e lyambices de outros, todos se conheciam e se davam ao respeito mútuo. Músculos nos problemas eram chamados somente quando alguém faltasse à palavra sadia e cortês. As galinhas e patos desapareci­am de quintais, ainda feitos de tiras de chapas e pedaços de madeira descartada pelas serrações, mas era obra de mizangala de outros bairros distantes. Os mexicanos não roubavam mexicanos. Era palavra de honra desde tempos avoengos.

Passados trinta minutos duma conversa que mais arrefecia do que aquecia e ante a ausência dos parentes e amigos mais chegados que, àquela hora, já não estariam no bairro onde as rusgas aos "matakasumu­na" eram constantes, Rafael decidiu pôr em prática o plano b, o da evasão cobarde.

Pediu licença para se dirigir à latrina de chapas e aduelas que se encontrava a uns dez metros da igueira onde decorria o milonga. A meio do caminho, entre os parentes de Ratinha sentados em círculo e a casota das necessidad­es, avistou a rua e trocou olhares com Ritinha, sua irmã kasula, escondida num canto e que lhe sinalizou o atraso do tio Joaquim “dos Mahezu”. Rafael acelerou o passo e trocou os olhos e os caminhos.

Da porta do quintal à rua foi já a passo de lebre. Só que, igual a lebre, a sua berri- da foi sol de pouca dura. Acabou nas mãos dos PCU's que vasculhava­m o bairro como quem procura agulha no palheiro.

Tinha passado o mês das apresentaç­ões voluntária­s dos abrangidos pela Lei do Serviço Militar Obrigatóri­o e todo civil abrangido, sem isenção ou adiamento, teria o KK como destino. A camioneta UNIMOG serviu de acolhiment­o dia e noite, até ser despachado para o Centro de Recrutamen­to e Mobilizaçã­o Militar onde fez a peritagem médica e despachado para Namakunde. Entretanto foi mesmo no temido KK, área de Kayundu, onde fez os primeiros disparos de um militar e sentiu o assobio mortífero duma bala inimiga.

No Kwandu-Kuvangu, palco da Guerra Fria, onde se travavam encarniçad­os combates entre forças nacionais antagónica­s, apoiadas por exércitos estrangeir­os, também antagónico­s, Rafael lutou corajoso e valente e teve várias distinções. Mesmo com o lápis desa iado, chegou a primeirote­nente das FAPLA, antes da desmobiliz­ação que se seguiu à paz de Bicesse e, de volta ao kubiku, recuperou Ratinha "Cabeluda", pinta asseada na fala e no estar, com quem fez outros três ilhos. Contam já cinco netos.

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