Alienação da criatividade artística e suspensão da crítica pública
debate em torno do valor das produções artísticas é tão antigo quanto a existência da própria arte. Trata- se de um dos mais velhos debates no seio da teoria artística e que, dado o elevado grau de imprecisão que encerra, é considerado por alguns teóricos como improdutivo. Contudo, existem os que defendem não ser inútil discutir o valor da obra de arte – e nós militamos nesta corrente de pensamento.
Pensamos que este conformismo decorre, essencialmente, da imprecisão da palavra “valor”. Nesta senda Koellreutter1 reconhece que “o conceito valor não pode ser de inido rigorosamente. Ele pertence àqueles conceitos abrangentes como ser, existência, realidade, entre outros, que não comportam uma de inição propriamente dita. Por conseguinte, podemos apenas tentar aclarar o sentido da palavra valor ser muito di ícil precisar o conteúdo deste termo”.
O nosso entendimento de valor associado à obra de arte será aquele que se constrói socialmente entre as subjectividades individuais. A arte só terá valor se cumprir uma função social. Dito de outra forma; é na sua utilidade e aplicabilidade que radica o valor de uma obra de arte. Esta é, seguramente, uma visão mais instrumental. Porém, se considerarmos a visão de Mateus2 para quem o valor das obras de arte consiste na sua função cognitiva, iremos avaliá-las de acordo com a quantidade ou qualidade dos elementos que possuem e que contribuem para o conhecimento; caso acreditemos que o seu valor consiste em permitir ao artista expressar-se, por exemplo, procuraremos avaliá- la tendo em conta a quantidade e qualidade dos elementos através dos quais o artista se expressou – e eventualmente através da importância que damos ao que foi expresso.
O ideal seria encontrar-se um meiotermo entre estas duas visões. Uma perspectiva que aglutinasse o instrumental e o simbólico, rumo a construção de uma nova hermenêutica das artes. Porque é disso que se trata. De uma teoria da avaliação da arte que fosse su icientemente precisa para analisar com minúcia todas as particularidades de uma obra de arte e ao mesmo tempo geral ao ponto de abranger as diversas formas da epifania artística. Até aqui, a nossa re lexão incidiu-se nos aspectos formais e intrínsecos das artes. A estes juntamos, agora, as interferências geradas por uma invenção moderna a que chamamos de mercado. Antes do mercado e da mercadorização da obra de arte, a produção artística era guiada pela subjectividade e gostos dos artistas e do público consumidor da arte. O que era artisticamente valorizado dependia inteiramente de quem produzia e de quem consumia. Veio o mercado e subverteu esta lógica. I inverteu as posições dos actores. Colocou o artista e o seu público na periferia do sistema, chamou para si todo o controlo e poder regência. O show business introduziu uma nova forma de ver o valor da arte baseado em critérios de natu- reza económica. Nesta nova forma de valorizar a arte impera o factor capital. Assim, terá mais ou menos valor artístico conforme for mais ou menos capitalizável a obra de arte. Deu-se, de facto, a substituição do valor artístico pelo valor económico. O mercado levou alienação criativa dos artistas e a suspensão quase permanente da capacidade crítica do público consumidor. Alguns poderão perguntar-me se o vemos nas obras de arte de sucesso mediático não é uma manifestação de criatividade, a estes responderei que não. A criatividade é sempre um exercício livre e de liberdade. Este exercício não se compadece com cânones, ditames ou imperativos externos seja de ordem for (política, ideológica ou económica). É preciso lembrar que a criatividade manifesta-se na marginalidade e na subversão às normas. Não é por acaso que grande parte dos génios das artes tenha sido indivíduos que tenham ido além das normas.
Actualmente a produção artística abandonou o âmbito das subjectividades com a supressão do espaço prémediático, Entendido aqui como lugar para a realização do solipsismo. O exercício de criar é agora alimentado por fontes exógenos e estranhas ao criador, porque cumpre uma agenda pré-estabelecida e imposta pelas indústrias culturais. Este processo capitaneado pelo mercado tem como principal objectivo in lacionar o valor económico da obra de arte em detrimento do valor artístico, originado a alienação da criatividade artística e a suspensão permanente da capacidade crítica público consumidor. O artista deixou de ser um criador, no sentido atribuído por Nietzsche3 para contentar-se com o papel de mero reprodutor dos padrões de sucesso e das tendências comerciais do mercado.
Diante deste cenário, parece-nos útil combinarmos os aspectos práticos da teoria do fetichismo da mercadoria, proposta por Karl Marx com os com aspectos formais da teoria materialista da arte de Walter Benjamim, sob pena de o mercado impor por completo e de uma vez por todas a lógica racionalidade instrumental que conduzirá inexoravelmente à desapropriação do sentido estético e do valor simbólico da arte.