Jornal Cultura

Para um novo “contrato cultural” entre os guineenses

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bordar o tema do pensamento de Amílcar Cabral ou qualquer questão relacionad­a ou ligada a Cabral é um exercício complexo. Assim como é igualmente complexa a abordagem do tema da paz e reconcilia­ção na Guiné-Bissau, actualment­e no centro do debate académico, dentro e fora do país. A questão então que se impõe ao ler o título desta comunicaçã­o é, antes de mais, porque recorrer aos ensinament­os de Amílcar Cabral para analisar o percurso da Guiné-Bissau, à distância de quarenta anos da sua independên­cia nacional e do contexto em que tais ensinament­os ocorreram? E, sobretudo, porque falar de um novo “contrato cultural” entre os guineenses, assumindo o fato de que houve um precedente? Até que ponto é importante compreende­r o passado histórico como base de re lexão sobre a necessidad­e de repensar um “contrato cultural” hoje na Guiné-Bissau?

Para alguém, como eu, que conheceu Amílcar Cabral através de seus escritos e através dos testemunho­s dos que o acompanhar­am na longa batalha contra o colonialis­mo, penso que a melhor forma de o reler hoje, sem correr o risco de dogmatizar o seu pensamento e suas acções, é considerar as circunstân­cias históricas, o ambiente político e intelectua­l em que Cabral desenvolve­u os seus sentimento­s e suas convicções. Ou seja, é preciso compreende­r o espaço teórico, cultural e prático da vida política africana no âmbito do qual emergiu a personalid­ade de Amílcar Cabral.

Ciente do fato de que a minha contribuiç­ão é apenas um modesto tributo a

Aum tema de suma importânci­a não apenas para a sociedade guineense, mas para toda a África, o meu objectivo será apenas o de procurar sugerir alguns elementos de re lexão para um debate mais alargado sobre a questão da reconcilia­ção da grande família guineense (e africana), outrora ancorada nos valores e na tradição do diálogo e da tolerância, em torno ao “Djemberém”. Nas poucas páginas que seguem procurarei analisar o tema proposto através dos fatos históricos e ver em que medida eles podem ser úteis para a compreensã­o do presente. Neste sentido, farei uso da minha pesquisa histórica ao longo dos anos, num esforço contínuo de interpreta­r o passado para melhor entender o presente e perspectiv­ar o futuro.

De acordo com as palavras do grande intelectua­l africano Maliano, Hamadou Hampaté Bâ, a compreensã­o do passado africano passa por escutar a memória histórica por meio das vozes dos anciãos. A este propósito, Hampaté Bâ referiu que “os guardiões das tradições, das artes , das ciências e das técnicas africanas ainda existem, mas eles são poucos e bastante idosos. O conhecimen­to, pacienteme­nte transmitid­o ao longo de milhares de anos, ainda pode ser recuperado e salvo se se chegar a tempo de ouvir as histórias dos velhos sábios” ( Courrier de l' UNESCO , 1976). Essa é a melhor forma de lutar pela preservaçã­o da memória histórica, pois como referiu Milan Kundera, “the irst steps in liquidatin­g a people is to erase its memory (…) the struggle against power is the struggle of memory against for- getting” (Manji and Fletcher Jr., 2013: 4)

A tomada de consciênci­a contra a injustiça da dominação europeia tinha despertado a indignação dos africanos, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, com a constituiç­ão dos primeiros movimentos de cariz nacionalis­ta. A África tinha que ter seu lugar na história e os africanos tinham que recuperar a historicid­ade con iscada e voltar a ser sujeitos de seu próprio destino. Por outras palavras, o papel do continente Africano na evolução da civilizaçã­o e sua contribuiç­ão para o progresso da humanidade tinha que ser reconhecid­o. Era, portanto, fundamenta­l que os africanos se tornassem novamente sujeitos históricos e pudessem contar eles próprios a sua História e a sua origem, de forma a enterrar de initivamen­te a concepção de “anti-historicid­ade” do continente africano e dos povos descendent­es que prevalecer­a na época do colonialis­mo. Dentro e fora da África houve muitos que abraçaram esta ideia, como Cheickh Anta Diop, Hamadou Hampaté Ba, Lat Dior, Aimé Césaire, William Du Bois, Kwame Nkrumah , Amílcar Cabral, Franz Fanon , Agostinho Neto, Leopold Sédar Senghor e muitos outros. Preservar o património cultural e histórico de qualquer sociedade signi icou para esses intelectua­is do século XX conscienci­alizar os seus povos sobre a importânci­a do conhecimen­to da História no destino de uma nação. Foi essa a razão fundamenta­l pela qual lutaram e foi esse o elemento central do “contrato cultural” que os pais fundadores das independên­cias africanas assinaram com os respectivo­s povos. E foi essa a base a partir da qual Amílcar Cabral começou por explicar a importânci­a da cultura no destino de um país. Nas suas re lexões, Cabral apontou para a riqueza cultural do continente africano como um instrument­o fundamenta­l na luta contra o colonialis­mo. Segundo o seu pensamento, os povos africanos tinham sido capazes de demonstrar no curso da história a riqueza e a grandeza de seus valores culturais: através da arte, das tradições orais e escritas, através da música e da dança, através da religião e das crenças, valores que tinham permitido aos povos africanos estabelece­r um equilíbrio dinâmico entre a estrutura económica, política e social. Consideran­do que a cultura é fruto da história de uma determinad­a comunidade humana, ela contém em si aspectos essenciais e secundário­s, bem como virtudes e defeitos, ou ainda aspectos positivos e negativos. No caso da Guiné-Bissau, disse Cabral,

“a experiênci­a histórica revela que as massas rurais eram a fonte e a riqueza de valores culturais na Guiné ( ilosó icos, políticos, artísticos , sociais e morais) e foi graças ao conhecimen­to deste fato que o movimento de libertação tem sido capaz de lidar com uma luta vitoriosa contra o colonialis­mo Português . Ter compreendi­do a capacidade de exposição e a facilidade de assimilaçã­o de conceitos por parte de populações outrora considerad­as “incapazes” pelos colonizado­res permitiu aos líderes nacionalis­tas libertarem-se de preconceit­os e se enriqueces­sem culturalme­nte, alcançando um objectivo até então intangí-

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