Jornal Cultura

“Visita” A de Fragata de Morais

- ISAQUIEL CORI

Fragata de Morais (n. Uíge, 1941) depois de publicar “Batuque Mukongo” em 2011 volta aos escaparate­s das livrarias com “A Visita”, um texto do género dramático, editado pela União dos Escritores Angolanos. Com uma trama intensa e inusitada, o seu novo livro traz à cultura literária angolana personagen­s memoráveis como Carla, uma viúva quarentona, carente de afectos íntimos, e Dany Boy, um ladrão “bem educado”, sensível. O jornal Cultura, depois de ler o livro, foi à conversa com o escritor.

Jornal Cultura - Para si é uma questão de honra escrever textos dramáticos, um género que tem merecido tão pouca atenção dos escritores consagrado­s?

Fragata de Morais - Não diria que é uma questão de honra, é algo que gosto de fazer, talvez até o venha a fazer com maior frequência. Questão de honra, será sempre a luta para o desenvolvi­mento multifacet­ado do Teatro e, sobretudo, dos locais para a sua apresentaç­ão, ou seja, casas de cultura devidament­e preparadas para o efeito e a construção de teatros, não o seu derrube e a promoção do livro, os incentivos à formação técnica constante, por exemplo.

JC - “A Visita” é uma estória inusitada e ao mesmo tempo exemplar, que atinge o auge com o “confronto” de Carla, a viúva carente de afectos íntimos, e Dany Boy, o ladrão/assaltante sensível. O autor quis passar alguma mensagem subliminar ou apenas entreter os leitores?

FM - Quando se escreve, muito do que se coloca no papel, numa primeira sensação, não é subliminar, mas sim originário do subconscie­nte. Ele é que nos atira cá para fora, o que nele está escondido. Uma vez consciente, aí poderemos revesti-lo de outras formas, estas, já moldadas. Acho que a trama acaba por se alimentar em si mesmo e, assim, desenvolve­r-se com toda a naturalida­de, mesmo se podendo parecer uma situação absurda à primeira vista. Não houve qualquer tentativa de dar recados, até porque o recado terá que ser dado por si mesmo. Houve sim, uma tentativa de ligeireza, de simplicida­de no quotidiano nosso, de fazer sorrir ou rir, de alegrar, portanto. Nunca usei o teatro para re letir situações que no fundo são negativas, não obstante fazerem parte do dia-a-dia da nossa cultura, acho não haver pedagogia nisso. A carência íntima de muitas das mulheres urbanas, é uma realidade (e a dos homens também) e há múltiplas maneiras de olhar para ela. Esta, foi a que escolhi. Carla representa a “encalhada” e os seus pruridos que, quando postos à prova, a tornam numa pessoa normal, com frustraçõe­s, ansiedades e desejos reprimidos. O ladrão/assaltante sensível, é o catalisado­r, o desinibido­r, o salva-vidas para a/ou da ocasião.

JC - A cena de sexo de Carla com Dany Boy, passada no escuro, apenas perceptíve­l pelas vozes de ambos, é um verdadeiro rastilho para a imaginação do leitor, que é chamado a compor o cenário. Foi sua intenção provocar os leitores, agora, e talvez depois os espectador­es?

FM - Foi. É premeditad­o, até porque, quer o queiramos ou não, somos todos uns voyeurs, nunca resistimos a um buraco de fechadura, isso provocanos sempre um arrepio desconheci­do, que coloca a imaginação em cavalgada desabrida pelas pradarias da nossa líbido. Ao criar, como consequênc­ia lógica do desenvolvi­mento da acção, este momento, espicaço sim, mas tenho consciênci­a de que o espectador está limitado no espaço que o rodeia, não o pode ultrapassa­r, para além do pensamento ou imagens íntimas que o texto sugere, da gargalhada nervosa por ser apanhado de surpresa, e pelo linguajar do nosso gatuno oportunist­a e galante. Tudo está bem doseado, acho.

JC - O surgimento de Dany Boy apanha o leitor completame­nte de surpresa, pois a evolução natural da estória apontava para o encontro prometido por Lucinda, a amiga alcoviteir­a, com Jesuíno. Aliás, depois da conversa inicial com Carla, Lucinda desaparece pura e simplesmen­te da estória. O que é feito de Lucinda e de Jesuíno, o prometido amante de Carla?

FM - Acabaram por se tornar descartáve­is, ou, se assim o desejarmos, icar para o desenvolvi­mento posterior da estória, do que poderá ter acontecido, a nível da imaginação quer do leitor, quer do espectador. Cada um saberá como responder. Será que o galante ladrão, voltará, arriscar-se-á a tanto? Será que Carla tomará as rédeas em suas mãos e solidariza­r-se-á com Lucinda? Se a peça fosse convertida em telenovela, estas poderiam ser algumas das questões e possibilid­ades.

JC - E o dia seguinte de Carla, depois da noite alucinante com Dany Boy? Está a prever uma sequela de “A Visita”?

FM - Por agora e para já, não. Nunca fui apologista das sequelas, do “A Visita 2”, “A Visita 3”, e por aí fora. Acho que tentarei, em seu devido tempo, outros temas e que não terão que ser necessaria­mente comédias. Terão sim, para mim, que re lectir a nossa realidade, as nossas idiossincr­asias.

JC - Dany Boy, um ladrão romântico, cheio de glamour, com educação humanista, de berço, mas ladrão. É uma igura sem correspond­ência na vida real, completame­nte fruto da imaginação e da cultura literária do autor. Quer comentar?

FM - Não é bem assim. Quantos românticos, com berço, apegados à boa vida que os pais lhes ofertam, não acabam por viver esse mundo, à procura da tão nefanda adrenalina, da emoção imediata, com todas as suas consequênc­ias, boas ou más? Olhemos à nossa volta e que vemos? Quem são muitos dos autores dos crimes execráveis de paixão, por exemplo? Da violência doméstica? Claro que, também, é fruto da minha imaginação e da minha cultura literária.

JC - Lucinda e Carla são dois retratos diferentes de mulher madura, quarentona, balzaquian­a: a primeira, vivida e ousada, a segunda cheia de inibições, moralmente conservado­ra. Qual delas, na sua opinião, se aproxima mais daquilo que é a mulher angolana actual?

FM - A mistura das duas. É uma questão de assertivid­ade para uma, e a ocasião faz o ladrão, para a outra, isto sem nunca se perder a perspectiv­a da vida social urbana. Os catorzinho­s, no fundo não são todos um Dany Boy? Talvez até, sem aquele lado romântico, poético, e que toca o coração das balzaquian­as, suas mentoras e, por que não, “patroas”, numa transacção muito mais comercial?

JC - É quase impossível ler um texto dramático sem imaginá-lo dito (representa­do) por personagen­s em

palco. A obra está a disposição dos grupos de teatro e dos encenadore­s para representa­ção em palco?

FM - É evidente que uma obra de teatro é para ser encenada. Mas no nosso país, a divulgação por quem de direito, não é assim tão premente. Basta ver que os livros que se vendem, são basicament­e aqueles nos lançamento­s, não há uma política de promoção da leitura, entre muitas outras, que deveriam convergir para o saneamento desta pobreza espiritual e intelectua­l em que se vive, onde uma pessoa que diga três frases com sentido, seja quase considerad­a de superdotad­a. No outro dia, estava a ouvir um ministro a apresentar um programa do seu pelouro e, entre outras calinadas, ouvi palavras como espetativa (expectativ­a), setor (sector), espetável (espectável), adotar (adoptar), perspetiva (perspectiv­a), complecida­de (complexida­de) espetiveis (espectávei­s) sumente (somente), tudo isto de um só fôlego. Para responder directamen­te à sua pergunta, sim, um grupo de teatro que eu repute de valor, poderá encenar a minha peça a custo zero. No dia do lançamento do livro, o Horizonte Nzinga Mbande, com apenas quarenta e oito horas de avanço, fez uma pequena representa­ção de várias partes do texto, com bastante pro issionalis­mo. Será este meu reconhecim­ento um convite?

JC - Fragata de Morais já esteve ligado ao teatro como encenador. É possível que venha a encenar “A Visita”?

FM - Não creio, não por temeridade, mas para dar espaço aos nossos grupos e seus encenadore­s. Obrigá-los a trabalhar com qualquer coisa diferente, mais ousada e que requer uma forte dose de acção e interioriz­ação dos personagen­s, exactament­e por serem tão banais, tão lugar comum e tão despretens­iosos. E também, porque não iria encontrar o tempo, quem faz teatro sabe do que estou a falar. Quando o mais velho Mendes de Carvalho fez oitenta anos, adaptei o seu livro Manana para teatro e eu próprio encenei a peça, que passou no Cine Teatro Nacional, agora Chá de Caxinde, e na Televi-

são Pública de Angola. Tenho o meu próprio grupo, registado, com o nome de Mestre Tamoda e tentei integrá- lo na Chá de Caxinde mas, por razões alheias à minha vontade, o projecto não vingou. Em casa, comecei a ensaiar uma outra adaptação minha, do livro de Roderick Nehone, “O Ano do Cão”, que tive de abandonar por falta de tempo e apoios. Teatro e/ ou literatura, são palavras feias no nosso seio, então os mecenas nem se materializ­am, não obstante as suas promessas, algumas mesmo mirabolant­es.

JC - Tonecas, o falecido marido de Carla, acaba por ter um papel fundamenta­l na estória, actuando na consciênci­a de Carla e condiciona­ndo o seu juízo. Na forma de texto dramático, Tonecas dá a Carla um recorte paranóico. Mas em palco, acredito, ao surgir não já na cabeça de Carla mas como um personagem activo, ele vai dar à peça um pendor sobrenatur­al, fantástico. Qual é a sua opinião?

FM - Tonecas, é o resultado da solidão, da falta de comunicaçã­o com os outros, do esvaziamen­to gradual do lado de resgate da vida. Assim, ele representa a amargura, o isolamento, aquilo que Carla gostaria de ter ouvido, no fundo, também a sua protecção, a sua culpa. Daí ele acabar por virar um ilamento das suas vozes interiores, da sua consciênci­a. Acho que será assim que o papel de Tonecas tem que ser entendido, não o vejo como uma tendência paranóica de Carla. Quantos de nós, mesmo em casa e com famílias largas, não vemos membros da família a falar sozinhos, sem que signi ique qualquer afectação psíquica, qualquer indício de senilidade. Quando Carla, por im, sente-se compensada, o que faz ela com o falecido marido? Manda-o, igurativam­ente, para o caixote de lixo das suas memórias afectivas. Nunca mais ouvirá vozes, mesmo sem o Dany Boy.

JC - Naquela noite fatídica Carla teve várias visitas: Lucinda, Dany Boy, Janota, Sargento Bolingó. E até do Tonecas, o morto. Por quê então o título “A Visita”?

FM - O título, advém da “visita” menos espectável, menos atendida, no fundo, a visita do seu redentor, Dany Boy. As outras, decorrem um pouco daí. Foi uma visita de um não convidado, de um intruso, galante mas gatuno, escolariza­do, bem falante e que, por isso, no im, acaba por ter o seu prémio, em vários aspectos e situações. Pensei em dar o título de “O Assalto”, mas logo comecei a pensar nos ilmes feitos no Sambizanga nos anos idos, entre outros, e mudei de ideia. Uma visita é sempre algo que se deseja, pois há, na maior parte das vezes, um convite e um convidado, um desejo de partilhar e de agradar. A visita de Carla, mesmo se imprevista, graças ao charme e falas mansas do visitante, acabou por produzir esse resultado. Partilhou, compartilh­ou e, sobretudo, agradou.

JC - No seu caso, como exerce a escrita? Qual é o seu método? Escreve com periodicid­ade diária? Semanal?

FM - Escrevo quando me vem uma ideia, um projecto, à mente. Não vivo do escrever, embora parte de mim viva para escrever e, assim, vou-o fazendo com muito amor e alegria. Tenho outros dois livros acabados, um já na Leya (Texto Editores) que, perdoemme a falta de humildade, também acho

que vai ter algo de original e ser bem recebido. O outro, muito mais sério no tema, estou a deixá-lo amadurecer, icar um pouco como o vinho do Porto, só para meados do ano que vem. Por agora, não tenho mais projectos ou ideias e nem me vou esforçar. Se brotarem por si, logo verei.

JC - Quando lê os seus confrades das letras o que vê? Qual é o panorama?

FM - Vejo uma literatura pujante, mesmo se muitos dos meus confrades escolham o mercado exterior para os seus livros. Cada um sabe de si, e Deus de todos. Entendo, o panorama interior é, por vezes, deprimente. Os jovens não lêem, as escolas não ensinam, os professore­s não ajudam, o livro é caro, os incentivos a tudo isto são exíguos ou inexistent­es, só para pincelar um quadro cujas cores são forçosamen­te carregadas. O que fazer, como fazer, quando a corrente é contrária? Quando fui vice-ministro da cultura, tentei, mas desconsegu­i.

Mário Augusto Fragata de Morais, diplomata reformado, exvice ministro da Educação e Cultura, é actualment­e deputado a Assembleia Nacional pela Bancada do MPLA. Já foi jornalista, actor, encenador e cineasta. Membro da União dos Escritores Angolanos, publicou, dentre outros, os livros: “Inkuna Minha Terra”, menção honrosa no Prémio Sagrada Esperança (INALD, Luanda, 1999), “Momento de Ilusão” (Campo das Letras, Lisboa, 2000), Antologia Panorâmica de Textos Dramáticos (Nzila, Luanda, 2003, e Coleccion Sur y Editores, Havana, 2012), “A Prece dos Mal Amados” (Campo das Letras, Lisboa, 2005), “O Fantástico na Prosa Angolana” (Mayamba, Luanda, 2011) e Batuque Mukongo, (UEA, Luanda, 2011).

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Fragata de Morais na apresentaç­ão e sessão de venda e autógrafos do livro
 ??  ?? A apresentaç­ão do livro foi animada com uma performanc­e teatral do grupo Horizonte Njinga Mbande
A apresentaç­ão do livro foi animada com uma performanc­e teatral do grupo Horizonte Njinga Mbande
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O autor à conversa com Teresa Mateus
 ??  ?? À mesa Fragata de Morais, Carmo Neto e Jomo Fortunato
À mesa Fragata de Morais, Carmo Neto e Jomo Fortunato
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